quarta-feira, 22 de julho de 2020

MEDITAÇÃO RETROSPECTIVA NOTURNA XXXVII: VISÃO DE MUNDO - "WELTANSCHAUUNG"

(IMAGEM: "Pinterest")


À medida que prossigo com a leitura dos textos produzidos pelos estoicos percebo uma abordagem mais focada na reflexão com fins práticos, para aplicação na vida cotidiana dos resultados a que se chegou refletindo.

Inegável a profundidade dos estoicos em temas mais voltados à ação do que à teoria do conhecimento e outros assuntos

Mais evidente ainda é que a atividade teórica dos estoicos está sempre situada numa abordagem que diverge profundamente da maneira com que se tem defendido o que seja a Filosofia atualmente, por exemplo.

Ora, desde Sócrates, portanto, levar a cabo uma atividade filosófica exige do seu praticante uma opção por um determinado “modo de viver” que está situado desde o início da atividade filosófica, sem foco inicial num objetivo a ser alcançado, pelo contrário, uma visão de mundo já deve estar na base da escolha deste determinado “modo de viver” em oposição a outras formas de agir e viver e, é esta que determina e dá os contornos daquilo que se pretende ensinar e como vai ensinar e, acima de tudo aprender.

Tomada a decisão, escolhido o caminho, tendo como ponto de partida uma tal "visão de mundo" a orientar cada passo; com "eustatheia" (tranquilidade) e "euthymia" (crença em si) deve-se, segundo os estoicos, prosseguir.

Vejamos, neste caso, Epicteto:

"Pergunte-se o seguinte no início da manhã:

O que está faltando para que eu me liberte da paixão?

E para alcançar a tranquilidade?

O que sou eu? 

Um corpo, um dono de propriedades ou uma reputação?

Nenhuma dessas coisas. 

O que, então? 

Um ser racional. 

O que, então, é exigido de mim? 

Meditar sobre as minhas ações.

Como eu me afastei da serenidade? 

O que eu fiz de hostil, indiferente e não-social?

O que eu falhei em fazer em todos esses momentos?”

...

Ademais, ainda numa recomendação "estoica", da manhã para a noite, e sobre isso, já encontrei proposta semelhante em autores como Agostinho de Hipona e outros, por exemplo.

E, nos “Versos dourados”, enquanto lia Hadot (1999) e EPICTÈTE (2002), recolhi esse preceito:

“Não deixe teu sono cair sobre seus olhos lassos

Antes de ter pesado todos os atos do dia:

Em que falhei? Que fiz, qual dever omiti?

Começa por aí e prossegue o exame: após o que

Condena o malfeito, alegra-te pelo Bem.”[1]

E, mais: lendo, também, nessa mesma perspectiva, numa outra abordagem para uma “visão de mundo”, temos as seguintes questões:

“Qual o meio prático mais eficaz que tem o homem de se melhorar nesta vida e de resistir à atração do mal?[2]

Um sábio da Antiguidade vo-lo disse: Conhece-te a ti mesmo.”

a) - Conhecemos toda a sabedoria desta máxima; porém a dificuldade está precisamente em cada um conhecer-se a si mesmo. Qual o meio de consegui-lo?

“Fazei o que eu fazia quando vivi na Terra: ao fim do dia, interrogava a minha consciência, passava revista ao que fizera e perguntava a mim mesmo se não faltara a algum dever, se ninguém tivera motivo para de mim se queixar. Foi assim que cheguei a me conhecer e a ver o que em mim precisava de reforma. Aquele que, todas as noites, evocasse todas as ações que praticou durante o dia e inquirisse de si mesmo o bem ou o mal que fez, rogando a Deus e ao seu anjo guardião que o esclarecessem, grande força adquiriria para se aperfeiçoar, porque, crede-me, Deus o assistiria. Dirigi, pois, a vós mesmos perguntas, interrogai-vos sobre o que tendes feito e com que objetivo procedestes em tal ou tal circunstância, sobre se fizestes alguma coisa que, feita por outrem, censuraríeis, sobre se obrastes alguma ação que não ousaríeis confessar. Perguntai ainda mais: “Se aprouvesse a Deus chamar-me neste momento, teria que temer o olhar de alguém, ao entrar de novo no mundo dos Espíritos, onde nada pode ser ocultado?” Examinai o que pudestes ter obrado contra Deus, depois contra o vosso próximo e, finalmente, contra vós mesmos. As respostas vos darão, ou o descanso para a vossa consciência, ou a indicação de um mal que precise ser curado.

“O conhecimento de si mesmo é, portanto, a chave do progresso individual. Mas, direis, como há de alguém julgar-se a si mesmo? Não está aí a ilusão do amor-próprio para atenuar as faltas e torná-las desculpáveis? O avarento se considera apenas econômico e previdente; o orgulhoso julga que em si só há dignidade. Isto é muito real, mas tendes um meio de verificação que não pode iludir-vos. Quando estiverdes indecisos sobre o valor de uma de vossas ações, inquiri como a qualificaríeis, se praticada por outra pessoa. Se a censurais noutrem, não a podereis ter por legítima quando fordes o seu autor, pois que Deus não usa de duas medidas na aplicação de Sua justiça. Procurai também saber o que dela pensam os vossos semelhantes e não desprezeis a opinião dos vossos inimigos, porquanto esses nenhum interesse têm em mascarar a verdade, e Deus muitas vezes os coloca ao vosso lado como um espelho, a fim de que sejais advertidos com mais franqueza do que o faria um amigo. Perscrute, conseguintemente, a sua consciência aquele que se sinta possuído do desejo sério de melhorar-se, a fim de extirpar de si os maus pendores, como do seu jardim arranca as ervas daninhas. Faça o balanço de seu dia moral, como o comerciante faz o de suas perdas e seus lucros; e eu vos asseguro que a primeira operação será mais proveitosa do que a segunda. Se puder dizer que foi bom o seu dia, poderá dormir em paz e aguardar sem receio o despertar na outra vida.

“Formulai, pois, de vós para convosco, questões nítidas e precisas e não temais multiplicá-las. Justo é que se gastem alguns minutos para conquistar uma felicidade eterna. Não trabalhais todos os dias com o fito de juntar haveres que vos garantam repouso na velhice? Não constitui esse repouso o objeto de todos os vossos desejos, o fim que vos faz suportar fadigas e privações temporárias? Ora, que é esse descanso de alguns dias, turbado sempre pelas enfermidades do corpo, em comparação com o que espera o homem de bem? Não valerá este outro a pena de alguns esforços? Sei haver muitos que dizem ser positivo o presente e incerto o futuro. Ora, esta exatamente a ideia que estamos encarregados de eliminar do vosso íntimo, visto desejarmos fazer que compreendais esse futuro, de modo a não restar nenhuma dúvida em vossa alma. Por isso foi que primeiro chamamos a vossa atenção por meio de fenômenos capazes de ferir-vos os sentidos e que agora vos damos instruções, que cada um de vós se acha encarregado de espalhar. Com este objetivo é que ditamos O Livro dos Espíritos.

SANTO AGOSTINHO

Muitas faltas que cometemos nos passam despercebidas. Se, efetivamente, seguindo o conselho de Santo Agostinho, interrogássemos mais amiúde a nossa consciência, veríamos quantas vezes falimos sem que o suspeitemos, unicamente por não perscrutarmos a natureza e o móvel dos nossos atos.

A forma interrogativa tem alguma coisa de mais preciso do que as máximas, que muitas vezes deixamos de aplicar a nós mesmos. Aquela exige respostas categóricas, por um sim ou um não, que não abrem lugar para qualquer alternativa e que são outros tantos argumentos pessoais. E, pela soma que derem as respostas, poderemos computar a soma de bem ou de mal que existe em nós.”

Portanto, ainda mais do mesmo, o que se pretende como objetivo a partir da filosofia, e nisso está o foco principal, aqui, está bem sintetizado na obra de Epicteto, no capítulo LII, do seu Encheirídion como:

“O primeiro e mais necessário tópico da filosofia é o da aplicação dos princípios [...]

Repitamos sempre a cada passo e a cada dia, os nossos esforços. 

E, jamais nos rendamos às dificuldades.

 

Para estudar os temas pensados nessa “meditação retrospectiva noturna””, algumas indicações, abaixo, embasadas em tradições diversas:

 

______.

AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Penguin/Companhia das Letras, 2017.

DINUCCI, A.; JULIEN, A. O Encheiridion de Epicteto. Coimbra: Imprensa de Coimbra, 2014.

EPICTETO. Entretiens. Livre I, II, III, IV. Trad. Joseph Souilhé. Paris: Les Belles Lettres, 1956.

______. Epictetus Discourses. Book I. Trad. Dobbin. Oxford: Clarendon, 2008.

______. O Encheirídion de Epicteto. Trad. Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão: EdiUFS, 2012. (Edição Bilíngue).

______. Testemunhos e Fragmentos. Trad. Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão: EdiUFS, 2008.

EPICTETUS. The Discourses of Epictetus as reported by Arrian; fragments; Encheiridion. Trad. Oldfather. Harvard: Loeb, 1928.  https://www.loebclassics.com/

FRANKL, Viktor. O sofrimento humano: Fundamentos antropológicos da psicoterapia. Trad. Bocarro, Karleno e Bittencourt, Renato. Prefácio, Marino, Heloísa Reis. São Paulo: É Realizações, 2019.

______. Em busca de sentido. 25. ed. - São Leopoldo, RS: Sinodal; Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

______. Yes to Life: In spite of everything. Beacon Press, 2020.

______. Um sentido para a vida: psicoterapia e humanismo. Aparecida, SP: Ideias e letras, 2005.

______. The doctor and the soul: from psycotherapy to logotherapy. New york: Bantam Books, 1955.

HADOT, Pierre. The inner citadel: the meditations of Marcus Aurelius. London: Harvard University Press, 2001.

______. O que é filosofia antiga. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d. (dépôt légal 1985). (O Livro dos Espíritos. Trad. Guillon Ribeiro, ______. O livro dos Espíritos. 93. ed. - 1. reimpressão (edição histórica). Brasília, DF: Feb, 2013. (Q. 903-919)

PLATÃO. Mênon. Trad. Maura Iglésias. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO; São Paulo: Ed. Loyola, 2001.

________. República de Platão. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2012.

________. Teeteto. Trad. Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

________. Timeu. Trad. Maria José Figueredo. Lisboa: Instituto Piaget, 2003.

SCHLEIERMACHER, F. D. E. Introdução aos Diálogos de Platão. Belo Horizonte, MG: Ed. UFMG, 2018.



[1] (PORFÍRIO. "Vida de Pitágoras". § 40; Epicteto. Entretiens. III, 10. 3 (tradução para o francês: Souilhé)).

[2] KARDEC, A. Le Livre des Esprits. 2013. (Q.919-919a)

Um comentário:

  1. Que belo texto! Reflexão com fins práticos, isso é muito importante na minha opinião!

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