domingo, 27 de fevereiro de 2022

REFLEXÃO MATINAL CXIX: EM CONTRAPONTO. AINDA SOBRE "FINITUDE" (IV)

 

(IMAGEM: "Pinterest")

Numa pausa, extremamente necessária; fiz releitura de três obras clássicas, nos últimos dias. Após terminadas, reli alguns trechos da obra de Boécio, que trata, em certa medida, da mesma temática “existencial”.

Ao longo do texto de “O último dia de um condenado”, por exemplo, Victor Hugo apresenta o momento derradeiro de um indivíduo condenado à “morte”.

Interessante o detalhe que me fez reler a obra: o crime não é revelado, de início, e Hugo conduz o leitor pela narrativa, culminando numa fase em que o condenado é apresentado como alguém que não se arrepende de seu crime, que aparece, em certa medida, nas outras duas obras que reli e menciono abaixo. Lamenta sim o que fez, por resultar em outro crime, do Estado, não por tê-lo condenado, mas por condenar sua filha, que será órfã de pai e estigmatizada, doravante.

O livro de Victor Hugo, com este tema, me levou à leitura de Dostoiévsky, que em “O Idiota” retoma o assunto, influenciado pela obra de Hugo.

Ora, dado esse tema, por ter aparecido nestes autores acima, acabei relendo “O estrangeiro”, de Camus, que de certa forma, trata na sua vertente, existencialista, o que Hugo e Dostoiévsky discutem em suas obras, mencionadas acima.

Meu interesse principal: a "última reflexão" que fazem os indivíduos diante da "sentença capital".

A estes, como disse acima, acrescentei “A consolação da filosofia”, de Boécio.

“Se esses soberbos se virem despojados de seu esplendor vazio deixarão aparecer, esses senhores, as correntes que os prendem e que eles trazem dentro de si…”  

“[...] à Filosofia não é lícito deixar caminhando sozinho um discípulo seu”

Hoje, como tem sido disciplinadamente, um instante da manhã é dedicado às reflexões, mesmo saindo um pouquinho dos referenciais básicos de sempre, passo em revista os pensamentos e ações, e corrigendas são planejadas e necessárias. Tendo aprendido esses “exercícios” com as leituras de Thich Nhat Hahn e os Estóicos, e hoje, abri uma exceção nas leituras estudadas com esse intuito. 

Reabri, após as releituras citadas acima, bem cedinho, a obra “A consolação da filosofia”, com o título original: "De phisolophiae consolatione"; releitura há muito planejada. Decisão bem acertada e o resultado da leitura foi um ganho enorme! Muito aprendizado!

Escrita na prisão por um condenado à morte, essa obra latina do século VI não deve nada, ou deve muito pouco, às circunstâncias “trágicas” de sua composição. Trata-se de uma obra-prima da literatura e do pensamento europeu; ela se basta, e teria o mesmo valor se ignorássemos tudo a respeito daquele que a concebeu entre duas sessões de tortura, à espera de uma execução. Mas, dado que essa obra-prima não é anônima, nada perde por ter um autor e ser situada em suas circunstâncias, torna-se também, assim, o testemunho da grandeza à qual um homem pode elevar-se pelo pensamento em face da tirania e da morte.

Ademais:

“O que Boécio nos ensina, com tanta autoridade hoje como no século VI, é que a única cultura fértil, oral ou escrita, é a que trazemos intimamente em nós, são os textos clássicos inesgotáveis inseminados na memória e cujas palavras tornam-se fontes vivas, à prova da tristeza, do sofrimento, da morte. O resto, de fato, é 'literatura'” (p. 17.)

Basicamente, na obra, Boécio trata da questão da verdadeira felicidade. Uma profunda reflexão em tonalidades platônicas.

Portanto, Boécio em seu livro “A consolação da filosofia” (por exemplo, no Livro IV), reflete sobre a infelicidade do homem. Defende que a injustiça que atinge o homem é ilusória e se entende dessa forma devido à sua limitada capacidade para um olhar mais ampliado sobre a existência. A entrega aos prazeres efêmeros faz com que o homem opte pelo vício e fuja da virtude que, ao contrário do que crê, lança-o num processo destrutivo que o aprisiona a uma perspectiva limitada da existência. A única rota possível para ampliar a concepção existencial capaz de desviá-lo de equívocos é o caminho de busca das Virtudes, única via na direção da verdadeira liberdade. As virtudes elevam o homem acima do nível rasteiro do comum da humanidade, afasta-o da animalidade. Reconhecer a própria natureza que torna o homem, efetivamente humano, em “essência”.

Acrescentei, algumas reflexões a partir de obras que tenho estudado e anotado aqui no Blog, com elementos de psicologia. Isto na medida em que os temas de certa forma se entrelacem ou sirvam para análise de conceitos e aprofundamentos.

(Grifos e destaques meus)

Enfim, valeram as releituras.

E, voltemos ao trabalho!

______.

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