“Passeia
sozinho, conversa contigo mesmo" (EPICTETUS, Diatribes,
III, 14, 1)
“Todas as escolas denunciaram o
perigo que corre o filósofo se imagina que seu discurso filosófico pode
bastar-se a si mesmo, sem estar de acordo com a vida filosófica (...).
Tradicionalmente, os que desenvolvem um discurso aparentemente filosófico, sem procurar
pôr sua vida em relação com o seu discurso e sem que seu discurso emane de sua
experiência e de sua vida, são denominados “sofistas” pelos filósofos (...)” (HADOT. 2014, p. 252).
Platão teria dito na Carta VII, 340c-d que aqueles que se creem filósofos mas que não adotaram um estilo de vida filosófico são apenas pintados com um verniz exterior que tem por objetivo mascarar suas opiniões superficiais (doxa - δόξα).
Com isso se vê o que
compreendiam os antigos por filosofia. Bem distante das meras exposições de
teorias como nos tempos atuais, a filosofia, portanto, era tomada como modo
vida. E, nesse sentido, como temos acompanhado aqui, entre as escolas
helenísticas, faremos mais uma reflexão matinal aos modos
do Estoicismo, com as leituras costumeiras, há algum tempo reunidas
para esse fim.
“O filósofo vive assim num estado intermediário: não é sábio, mas não é não sábio. Ele está, pois, constantemente cindido, entre a vida não filosófica e a vida filosófica, entre o domínio do habitual e do cotidiano e o domínio da consciência e da lucidez. Na medida em que ela é pratica de exercícios espirituais, a vida filosófica é um desenraizamento da vida cotidiana: ela é uma conversão, uma mudança total de visão, de estilo de vida, de comportamento.” (Idem, Ibidem, 2014, p. 38)
Aqui, temos refletido sobre algumas passagens do que chegou até nós da obra de Epicteto, que será o caso, novamente nessa reflexão matinal. Para ele, a adaptação (conversão) a uma vida filosófica é tarefa de bastante complexidade, da do que esse caso, o Estoicismo exigia um conjunto de regras que resultariam num determinado tipo de conduta rigoroso. Como já escrevemos aqui, o que era proposto por Epicteto e que Hadot chamou de “exercícios espirituais” era de difícil adaptação aos que se iniciavam na caminhada. No entanto, são esses “exercícios” que possibilitam o desenvolvimento dos que que pretendiam prosseguir. Eram adotadas determinadas práticas na formação do indivíduo para que estivesse preparado para o enfrentamento das meras opiniões leigas no que se referisse ao que verdadeiramente buscavam os estoicos.
“Mas forçosamente serás levado de um lado a outro pelos leigos (idiótes). E então por que eles são mais fortes que vocês? Porque eles afirmam essas porcarias como suas opiniões enquanto vocês dizem lindezas da boca para fora. Por isso são coisas sem força, mortas; é de dar asco ouvir suas exortações e suas infortunadas virtudes proclamadas de cima a baixo. É assim que os leigos vencem, pois a opinião é forte, a opinião é invencível em tudo. Até que esses conceitos bonitos fiquem mais sólidos em vocês, por segurança, eu os aconselho a condescender com os leigos com precaução. Do contrário, a cada dia tuas anotações escolares se derreterão como cera no sol. Assim, leva os conceitos a alguma parte longe do sol enquanto são moles como a cera. Por isso os filósofos aconselham também a se afastar da pátria, porque os hábitos antigos distraem e não permitem que se comece outro hábito. É que não suportamos quando nos deparamos com pessoas que nos digam: “Veja, fulano agora filosofa, mas antes era assim e assim”. Por isso os médicos enviam para outras terras e outros ares os que padecem de uma grande doença, e fazem bem. Dessa forma, introduzam também vocês novos costumes, façam com que se solidifiquem os conceitos, exercitem-se neles” (EPICTETO. D. III, XVI, 6-13).
Interessante notar que o que Epicteto diz define muito bem o que ele proporá para seus alunos. Para ele, os iniciantes precisam buscar a preparação para enfrentarem a “opinião” do leigo que, segundo diz são mais obstinados na defesa de suas "opiniões" do que alguém que está se exercitando na busca por vida verdadeiramente filosófica (prokópton. A (ἄσκησις); a adoção de novos hábitos, portanto, é o primeiro passo para que não vacile diante do "ignorante" mais convicto de suas “opiniões”. O caminho do prokópton, portanto é (áskésis - ἄσκησις), o exercício para mudança de hábitos.
“Lembra que o propósito do desejo é obter o que se deseja, <e> o propósito da repulsa é não se deparar com o que se evita. Quem falha no desejo é não-afortunado. Quem se depara com o que evita é desafortunado. Caso, entre as coisas que são teus encargos, somente rejeites as contrárias à natureza, não te depararás com nenhuma coisa que evitas. Caso rejeites a doença, a morte ou a pobreza, serás desafortunado. [2.2] Então retira a repulsa de todas as coisas que não sejam encargos nossos e transfere-a para as coisas que, sendo encargos nossos, são contrárias à natureza. Por ora, suspende por completo o desejo, pois se desejares alguma das coisas que não sejam encargos nossos, necessariamente não serás afortunado. Das coisas que são encargos nossos, todas quantas seria belo desejar, nenhuma está ao teu alcance ainda. Assim, faz uso somente do impulso e do refreamento, sem excesso, com reserva e sem constrangimento.” (EPICTETO, Encheirídion. II, 2012)
______.
ARRIANO FLÁVIO. O Encheirídion. Edição Bilíngue. Tradução do texto grego e notas Aldo Dinucci; Alfredo Julien. Textos e notas de Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão. Universidade Federal de Sergipe, 2012).
BERGSON,
Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com
o espírito. Trad. Paulo Neves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleção
tópicos)
______. Evolução
criadora. São Paulo: Editora Unesp, 2010.
______. Ensaio
sobre os dados imediatos da consciência. São Paulo: Edipro, 2020.
______. A
energia espiritual. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2021.
______. Aulas
de psicologia e de metafísica. WMF Martins Fontes. 2014.
BICALHO, Vanessa Brun. Ciência e sabedoria
de vida na filosofia transcendental de Kant à luz do estoicismo. Tese
de Doutorado (Campus de Toledo). Universidade Estadual do Oeste do Paraná –
Unioeste, 2021.
DESCARTES,
R. Oeuvres. Org. C. Adam e P. Tannery. Paris: Vrin, 1996. 11v.
[indicadas no texto como Ad & Tan]
_______. Descartes: oeuvres
et lettres. Org. André Bidoux. Paris: Gallimard, 1953. (Pléiade).
______. Discursos
do Método; Meditações; Objeções e Respostas; As Paixões da
Alma; Cartas. (Introdução de Gilles-Gaston Granger; prefácio e
notas de Gerard Lebrun; Trad. de J. Guinsberg), Bento Prado J. 3. ed. São
Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os Pensadores).
______. O
mundo (ou Tratado da luz) e O Homem. Apêndices,
tradução e notas: César Augusto Battisti, Marisa Carneiro de Oliveira
Franco Donatelli. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009.
DINUCCI, A.; JULIEN, A. O Encheiridion
de Epicteto. Coimbra: Imprensa de Coimbra, 2014.
EPICTETO. Entretiens. Livre I, II, III, IV. Trad. Joseph Souilhé. Paris: Les Belles Lettres, 1956.
______. Epictetus Discourses. Book I. Trad. Dobbin. Oxford: Clarendon, 2008.
______. O Encheirídion de Epicteto. Trad. Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão: EdiUFS, 2012. (Edição Bilíngue)
______. Testemunhos e Fragmentos. Trad. Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão: EdiUFS, 2008.
EPICTETUS. The Discourses of Epictetus as reported by Arrian; fragments; Encheiridion. Trad. Oldfather. Harvard: Loeb, 1928. https://www.loebclassics.com/
HADOT, Pierre. The inner citadel: the meditations of Marcus Aurelius. London: Harvard University Press, 2001.
______. P. O que é filosofia antiga? Trad. Dion Davi Macedo. 6 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014
KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d. (dépôt légal 1985). ______. O livro dos Espíritos. 93. ed. - 1. reimpressão (edição histórica). Trad. Guillon Ribeiro, Brasília, DF: Feb, 2013.
MARCO AURÉLIO. Meditações. São
Paulo: Abril Cultural, 1973. (Livro II. 1)
PLATÓN. Carta VII, In: Diálogos VII (Dudosos, Apócrifos, Cartas). Madrid: Gredos, 1992.
PRITCHARD, M. “Philosophy for Children”. Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2002. Acessado em 19 de agosto de 2016; Fonte: http://plato.stanford.edu/entries/children/ .
SÉNECA, Lúcio Aneu. Cartas
a Lucílio. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2014.
Nenhum comentário:
Postar um comentário