O filósofo Hans-Georg Gadamer figura entre os herdeiros de
uma tradição que pode ser registrada a partir da hermenêutica de Friedrich
Schleiermacher (1768-1834).
Gadamer, em certa medida, deu
roupagens novas a alguns pressupostos: a natureza e o objeto da hermenêutica. Influenciado também, pelo diálogo socrático-platônico, pelas ideias
aristotélicas sobre o conceito de phrônesis e por Martin Heidegger, em "Ser e Tempo" e "A questão da técnica" , preservando aspectos do conceito de “historicidade”
hegeliano e de “mundo da vida” de Edmund Husserl.
Para ele, a hermenêutica não pode ser
entendida somente como método ou técnica para interpretar ou compreender
textos; deve ser tomada como postura existencial frente às
nuances da vida; diante da ocorrências dos acontecimentos.
Com a sua hermenêutica filosófica,
Gadamer tratou de analisar antigos temas da história
da filosofia.
E, aqui, especificamente, como o meu interesse por alguns desses temas vem crescendo, decidi visitar a obra gadameriana que traz reflexões sobre a ciência, a técnica e decorrências dessa relação - um pouco do que andei pensando durante o mestrado. Percebi que Gadamer, assim como outros autores que tenho me dedicado à leitura, sempre esteve às voltas com uma certa crítica ao “cientificismo”; às vezes, aparecendo nos seus textos, um autor "anticientífico", defendendo a alta relevância das “humanidades”
sobre o “tecnicismo reducionista”.
Aqui, portanto, com este seu livro “O mistério da saúde: o
cuidado da saúde e a arte da medicina”, Gadamer reuniu alguns dos artigos e
conferências que realizou em “ocasiões especiais”, como diz no início
do prefácio, durante 25 anos de sua produção, entre 1965 e 1990, sobre o cuidado com
a saúde em tempos de desenvolvimento da ciência e da técnica.
Em seu livro, Gadamer trata de compreender que a ciência, e a medicina enquanto área comprometida
com a ciência, não são capazes de, sozinhas, resolverem todos os problemas
humanos, trabalhando com a tese mais específica de que é a saúde, e não a
doença, o grade foco a ser estudado e é nesse ponto onde reside, na verdade: o “mistério da
saúde” que desenvolverá.
Perceptível que Gadamer mantem diálogo constante com pensadores
como Platão, Aristóteles, alguns de seus contemporâneos e outros autores, ao longo dos capítulos
do livro.
"O primeiro capítulo, “Teoria,
técnica, prática” - (Stuttgart, 1972); (1993, p. 11-38), apresenta a principal questão que será
desenvolvida ao longo do livro: a de que vivemos na era da ciência. Para mim, muito interessante esse tema, que me levou a pensar sobre, no mestrado, como apontei acima. E, a
partir daí nota-se que Gadamer faz um percurso desde o que entendiam os gregos sobre teoria, técnica
e prática e a maneira moderna com que se relaciona com a questão. Sempre
presente a ideia de que é preciso trabalhar num nível de “totalidade”, num sentido
de visão integral do homem. Toca, em certa medida, portanto, na questão do “naturalismo”,
inclusive.
No segundo capítulo: “Apologia da
arte de curar” - (Leipzig, 1965); (1993, p. 39-50), é apresentada uma importante tese que discute na obra: a
de que a natureza tem o papel mais relevante sobre questões de saúde,
caracterizado historicamente desde os antigos gregos, por uma compreensão da
medicina como a área a se ocupar com o “equilíbrio natural”.
Em “Acerca o problema da inteligência” - (Wiesbaden, 1963 - publicado em 1964); (1993, p. 51-64), terceiro capítulo do livro, Gadamer, com a tese de que o ser humano
deve ser pensado em sua totalidade, propõe discutir o conceito de “inteligência
como desempenho”, como inteligência num âmbito mais integrado com o que pode
entender por saúde da pessoa, destacando a importância da saúde mental, por
exemplo.
Por sua vez, em “A experiência da
morte” - (Heidelberg, 1983), (1993, p. 65-72), quarto capítulo, Gadamer aborda o tema da vida.
Para Gadamer, o
modo como a modernidade tem tratado a questão sofreu uma transformação na
medida em que cresceu a secularização causado pela racionalidade técnica amplamente
presente do mundo. Tal avanço tecnológico e secularização gera, por um lado, o prolongamento
artificial da vida; por outro lado, dado o limite do ser humano em
relação à “morte” ganha proporções novas também, na medida em que a consciência
da nossa “finitude” nos afeta com mais intensidade. Destaca a necessidade de equilíbrio
entre a razão instrumental científica e os valores humanos. Mais à frente, pretendo retornar a esse tema, considerando outros referenciais.
Mais uma vez, o quinto capítulo, “Experiência
e objetivização do corpo” - (publicado em 1986, s.l.); (1993, p. 73-84) , partindo dos gregos, Gadamer fala sobre a arte
de curar dos gregos, destacando a unidade presente nessa entre corpo e alma.
Mesmo a ciência, no estágio em que se encontra deve reconhecer tais limites por
parte da ciência médica, que segundo Gadamer caracteriza por priorizar aspectos
biológicos na abordagem do tema da saúde do ser humano.
E, “Entre natureza e arte” - (Heidelberg, 1987), (1993, p. 85-92),
sexto capítulo, o destaque é para uma questão também fundamental sobre a saúde.
Gadamer, novamente partindo das noções de “arte” entendida como techné; “o
saber e o ser-capaz-de-fazer que sabe” e, discute a tarefa do médico alguém que
contribui para o restabelecimento ao “estado natural” do doente.
A obra em seu sétimo capítulo: “Filosofia
e medicina prática” (Berlim/Heidelberg, 1990); (1993, p. 93-100), apresenta um argumento de que: a prática
médica no caso de teoria e técnica, não consistiria meramente em aplicar-se a
lei e princípios específico, pois, no caso humano, cada situação é
distinta de outra. E, recorre ao conceito de “medida” em Platão como algo que é
“apropriado” ou adequado numa determinada situação única. Isso, leva
Gadamer a ressaltar que a saúde não pode ser totalmente objetivada pela
ciência médica. Aí reside o “o caráter oculto da saúde”, ora se não há como
medi-la, o que deve priorizar é a busca por um estado de adequação interna
das pessoas, entre alma e corpo, integralmente.
No nono capítulo: “Autoridade e
liberdade crítica” (Zürich, 1983); (1993, p. 113-120), Gadamer fala sobre a autoridade da ciência, e propõe
uma relação mais próxima entre autoridade e liberdade crítica, que consistiria
em reconhecendo os limites próprios como ser humano. E, isso ele trata mais
detalhadamente no próximo capítulo.
Como faz em toda obra, também no
décimo capítulo: “Tratamento e diálogo” (Oettingen, 1989); (1993, p. 121-132), Gadamer recorre a um
conceito filosófico bem conhecido e presente na obra de Platão: o de “diálogo”
aplicando-o à saúde. Etimologicamente, segundo Gadamer, a palavra “tratamento”
teria se originado de “apalpar”.
Gadamer, em relação ao diálogo dirá que em si
mesmo, já se construiria como “tratamento” e, propõe uma associação entre diagnóstico,
tratamento e o diálogo – no qual o paciente teria participação e colaboraria. A
cura, destaca Gadamer, é o pleno poder da natureza, e não poder do médico.
“Mas é inerente à natureza do homem, manter-se
– em todo o seu saber e poder – em consonância com a natureza. Tal é a antiga
sabedoria dos estóicos” (p.131).
O 11º capítulo, temos um tema que pretendo desenvolver melhor mais a frente: "Vida e alma"(Zürich, 1986); (1993, p. 133-142),
ainda com os filósofos gregos analisa os conceitos de “vida” e “alma” em
relação com as transformações modernas e contemporâneas.
O 12º
capítulo: “A angústia e as ansiedades” (Conferência em Heidelberg, 1990); (1993, p. 143-152), tem como ponto de partida a obra de
Martin Heidegger sobre a “angústia” que, no sentido heideggeriano é uma
categoria existencial que possibilitaria o despertamento atravé das
questões sobre o ser e o nada, deixando de ser mero desarranjo psicológico ou
patologia psiquiátrica. Para Gadamer, a angústia e os medos constituiriam parte
importante da “natureza humana" e, não são doenças. Um tema que pretendo desenvolver melhor mais a frente, também.
Chegando ao último capítulo, “Hermenêutica
e psiquiatria” (San Francisco, 1989); (1993, p. 153-161), em que Gadamer reflete sobre a possibilidade de
aproximação entre as duas por, a seu ver, estarem preocupadas com as grandes
questões humanas: a saúde e a doença."
Enfim, uma grande contribuição de
Gadamer para “o mistério da saúde” e a reflexão sobre o “cuidado da saúde” numa
concepção integradora de corpo e alma. Uma retorno, mesmo a partir do presente, às concepções gregas sobre o tema. E, de tudo isso se infere que pretendo retornar aos temas, inclusive buscando relações com outros temas e autores que já esbocei aqui, nesse "blog."
(Em andamento...)
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GADAMER, Hans-Georg. O mistério da saúde: o cuidado da saúde
e a arte da medicina. Lisboa: Edições 70, 1993. 165p.
______. Über die Verborgenheit der Gesundheit. (O mistério da saúde). In: Erfahrungsheikunde, Acta medica empirica: Zeitschrift für sie ärztliche Praxis, vol. 40, nº 11, 1991, 804-808.
______. O caráter oculto da saúde.
Petrópolis: Editora Vozes; 2006. In: FRAGELLI, Thaís
Branquinho Oliveira. Cad. Saúde
Pública, Rio de Janeiro, 23(10):2517-2522, out, 2007.