sexta-feira, 3 de julho de 2020

KANT, RAWLS E A "HISTÓRIA DA FILOSOFIA MORAL"

Lectures on the History of Moral Philosophy (English Edition ...

"Não podemos apreender filosofia; pois onde está ela, quem a possui e como a podemos reconhecer? Podemos apenas aprender a filosofar, isto é, a exercer o talento da razão, de acordo com seus princípios universais, em certos ensaios de filosofia realmente existentes, reservando sempre, contudo, os direitos da razão de investigar, confirmar ou rejeitar esses princípios em suas próprias fontes.” (KANT, B866 apud John Rawls, 2005, p. XVII)

John Rawls, nesse livro, dialoga com textos e autores clássicos que estão entre os principais na história da formação dos “valores” nas sociedades de seu tempo e ainda, de certa forma, permanecem nos debates sobre o assunto.

Além da própria importância do autor, o que me levou inicialmente a lê-lo e a relê-lo nos últimos dias foi o fato de que seus textos abordam de forma bem peculiar a “história da filosofia moral”.

Destaca autores e textos que contribuíram enormemente para essa história da filosofia moral. Os cinco primeiros capítulos apresentam a contribuição de David Hume; Dois capítulos tratarão de Leibniz; a Kant, são dedicados dez capítulos, dando especial atenção à Fundamentação da metafísica dos costumes e à Crítica da razão prática; concluindo com dois capítulos sobre Hegel. Todos eles, na verdade, tem maior ou menor interesse, para mim, à medida que encontro pontos de contato com as formulações kantianas.

Destaco das páginas XVII a XIX, o que diz o próprio John Rawls, na tradução brasileira da obra:

“Ao dar aulas, digamos, sobre Locke, Rousseau, Kant, ou J. S. Mill, sempre procurei fazer especialmente duas coisas. Uma era propor os seus problemas como eles mesmos os viam, dada a sua compreensão de tais problemas em seu próprio tempo. Citei com frequência a observação de Collingwood de que “a história da teoria política não é a história de diferentes respostas a uma mesma questão, mas a história de um problema que se modifica com maior ou menor constância, cuja solução se modifica com ele. [...] A segunda coisa que eu procurava fazer era apresentar o pensamento de cada escritor naquela que eu considerava a sua forma mais forte. Levei a sério a observação de Mill em seu exame de [Alfred] Sidgwick: “Uma doutrina não é julgada até que seja julgada em sua melhor forma.” Eu não dizia, ao menos não intencionalmente, o que pensava que um escritor deveria ter dito, mas antes o que o escritor de fato disse, sustentado pelo que eu via como a interpretação mais razoável do texto. O texto deveria ser conhecido e respeitado, e sua doutrina apresentada em sua melhor forma. Deixar o texto de lado me parecia ofensivo, um tipo de fingimento. Se me afastasse dele – não há nisso nenhum mal – eu tinha de dizê-lo. Dar aula desta maneira, eu acreditava, tornava as opiniões de um escritor mais fortes e convincentes, e objetos mais dignos de estudo. Sempre pressupus que os escritores que estudávamos eram muito mais espertos que eu. Se não fosse, por que eu desperdiçava meu tempo e o tempo dos alunos estudando-os? Se via um erro em seus argumentos, supunha que estes escritores também o teriam visto e teriam por certo se ocupado dele. Mas onde? Eu procurava por sua saída, não pela minha. Por vezes sua saída era histórica: em sua época a questão não precisava ser levantada, ou não surgiria, e não poderia, pois, ser prolificamente discutida. Ou havia uma parte do texto que eu negligenciara, ou não lera. Partia do princípio de que jamais havia erros manifestos, ao menos não erros que tivessem importância. Ao fazer isso, seguia o que Kant diz na Crítica da razão pura em B 866, a saber, que a filosofia é uma mera ideia de uma ciência possível e em parte alguma existe in concreto: “Não podemos apreender filosofia; pois onde está ela, quem a possui e como a podemos reconhecer? Podemos apenas aprender a filosofar, isto é, a exercer o talento da razão, de acordo com seus princípios universais, em certos ensaios de filosofia realmente existentes, reservando sempre, contudo, os direitos da razão de investigar, confirmar ou rejeitar esses princípios em suas próprias fontes.” Assim, aprendemos filosofia moral e política – ou, em verdade, qualquer parte da filosofia – estudando os modelos, aquelas individualidades insignes que fizeram estimadas tentativas de filosofar; e, se temos sorte, encontramos um caminho para ir além deles... O resultado foi que eu relutava em levantar objeções aos modelos; pois isso é demasiado fácil e deixa escapar o que é essencial. Entretanto, era importante apontar as dificuldades que aqueles que posteriormente tomaram parte na mesma tradição procuraram superar, ou indicar visões que aqueles de outras tradições consideravam equivocadas... (...) Ao lecionar, é essencial tentar transmitir aos alunos, através de nosso discurso e da nossa conduta, um tanto dessa noção e do porquê dela. O que só pode ser feito se considerarmos o pensamento do texto com seriedade, como digno de honra e respeito. Isso pode por vezes ser um tipo de reverência, ainda que nitidamente distinto da adulação ou de uma aceitação acrítica da autoridade do texto ou do autor. Toda filosofia verdadeira busca uma crítica justa e depende da continuidade do juízo público reflexivo.

Uma excelente interpretação histórica de grandes autores e o quanto suas obras contribuíram e ainda contribuem na reflexão sobre os temas que John Rawls nos apresenta.

(Grifos e destaques meus)

______.

RAWLS, John. Lectures on the history of moral philosophy. Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 2000.

_________. História da Filosofia Moral. São Paulo: Martins Fontes, 2005.


Sobre o tema. e algumas obras de Immanuel Kant:


CUNHA, Bruno. A gênese da ética em Kant. São Paulo: Editora LiberArs, 2017.

KANT, Immanuel. Lições de ética. Trad. Bruno Cunha e Charles Fedhaus. São Paulo: Editora Unesp, 2018.

______. Lições sobre a doutrina filosófica da religião. Trad. Bruno Cunha. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.

______. Anthropology from a pragmatic point of view. Carbondale, III: Southern Illinois University Press. 1996. eBook., Base de dados: eBook Collection (EBSCOhost).

______. Antropologia de um ponto de vista pragmático. Trad. Clélia Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006.

______. Crítica da razão prática. Tradução de Valério Rohden. São Paulo, Martins Fontes, 2002.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Discurso editoria: Barcarola, 2009

______. A metafísica dos costumes. Trad., apresentação e notas de José Lamego. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.

O’NEILL, Onora. Constructions of Reason: explorations of Kant's practical philosophy. Cambridge University Press, 1990.

TORRES, José Carlos Brum (Org.). Manual de ética: questões de ética teórica e aplicada. Petrópolis, RJ: Vozes; Caxias do sul: Universidade de Caxias do Sul: BNDES, 2014.

TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre ética. 5. ed. revista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.

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