"Não podemos
apreender filosofia; pois onde está ela, quem a possui e como a podemos
reconhecer? Podemos apenas aprender a filosofar, isto é, a exercer o talento da
razão, de acordo com seus princípios universais, em certos ensaios de filosofia
realmente existentes, reservando sempre, contudo, os direitos da razão de
investigar, confirmar ou rejeitar esses princípios em suas próprias fontes.” (KANT,
B866 apud John Rawls, 2005, p. XVII)
John Rawls, nesse livro, dialoga com
textos e autores clássicos que estão entre os principais na história da
formação dos “valores” nas sociedades de seu tempo e ainda, de certa forma,
permanecem nos debates sobre o assunto.
Além da própria importância do autor,
o que me levou inicialmente a lê-lo e a relê-lo nos últimos dias foi o fato de
que seus textos abordam de forma bem peculiar a “história da filosofia moral”.
Destaca autores e textos que contribuíram
enormemente para essa história da filosofia
moral. Os cinco primeiros capítulos
apresentam a contribuição de David Hume; Dois capítulos tratarão de Leibniz; a
Kant, são dedicados dez capítulos, dando especial atenção à Fundamentação da metafísica dos costumes e
à Crítica da razão prática; concluindo com dois capítulos sobre Hegel. Todos
eles, na verdade, tem maior ou menor interesse, para mim, à medida que encontro
pontos de contato com as formulações kantianas.
Destaco das páginas XVII a XIX, o que
diz o próprio John Rawls, na tradução brasileira da obra:
“Ao
dar aulas, digamos, sobre Locke, Rousseau, Kant, ou J. S. Mill, sempre procurei
fazer especialmente duas coisas. Uma era
propor os seus problemas como eles mesmos os viam, dada a sua compreensão de
tais problemas em seu próprio tempo. Citei com frequência a observação de
Collingwood de que “a história da teoria política não é a história de
diferentes respostas a uma mesma questão, mas a história de um problema que se
modifica com maior ou menor constância, cuja solução se modifica com ele. [...]
A segunda coisa que eu procurava
fazer era apresentar o pensamento de cada escritor naquela que eu considerava a
sua forma mais forte. Levei a sério a observação de Mill em seu exame de
[Alfred] Sidgwick: “Uma doutrina não é julgada até que seja julgada em sua
melhor forma.” Eu não dizia, ao menos não intencionalmente, o que pensava que
um escritor deveria ter dito, mas antes o que o escritor de fato disse,
sustentado pelo que eu via como a interpretação mais razoável do texto. O texto
deveria ser conhecido e respeitado, e sua doutrina apresentada em sua melhor
forma. Deixar o texto de lado me parecia ofensivo, um tipo de fingimento. Se me
afastasse dele – não há nisso nenhum mal – eu tinha de dizê-lo. Dar aula desta
maneira, eu acreditava, tornava as opiniões de um escritor mais fortes e
convincentes, e objetos mais dignos de estudo. Sempre pressupus que os
escritores que estudávamos eram muito mais espertos que eu. Se não fosse, por
que eu desperdiçava meu tempo e o tempo dos alunos estudando-os? Se via um erro
em seus argumentos, supunha que estes escritores também o teriam visto e teriam
por certo se ocupado dele. Mas onde? Eu procurava por sua saída, não pela
minha. Por vezes sua saída era histórica: em sua época a questão não precisava
ser levantada, ou não surgiria, e não poderia, pois, ser prolificamente
discutida. Ou havia uma parte do texto que eu negligenciara, ou não lera.
Partia do princípio de que jamais havia erros manifestos, ao menos não erros
que tivessem importância. Ao fazer isso, seguia o que Kant diz na Crítica da razão pura em B 866, a saber, que a filosofia é uma mera ideia de uma
ciência possível e em parte alguma existe in concreto: “Não podemos apreender filosofia; pois onde está ela, quem a possui e
como a podemos reconhecer? Podemos apenas aprender a filosofar, isto é, a
exercer o talento da razão, de acordo com seus princípios universais, em certos
ensaios de filosofia realmente existentes, reservando sempre, contudo, os direitos
da razão de investigar, confirmar ou rejeitar esses princípios em suas
próprias fontes.” Assim, aprendemos filosofia moral e política – ou, em
verdade, qualquer parte da filosofia – estudando os modelos, aquelas
individualidades insignes que fizeram estimadas tentativas de filosofar; e, se
temos sorte, encontramos um caminho para ir além deles... O resultado foi que
eu relutava em levantar objeções aos modelos; pois isso é demasiado fácil e
deixa escapar o que é essencial. Entretanto, era importante apontar as
dificuldades que aqueles que posteriormente tomaram parte na mesma tradição
procuraram superar, ou indicar visões que aqueles de outras tradições
consideravam equivocadas... (...) Ao lecionar, é essencial tentar transmitir
aos alunos, através de nosso discurso e da nossa conduta, um tanto dessa noção
e do porquê dela. O que só pode ser feito se considerarmos o pensamento do
texto com seriedade, como digno de honra e respeito. Isso pode por vezes ser um
tipo de reverência, ainda que nitidamente distinto da adulação ou de uma aceitação
acrítica da autoridade do texto ou do autor. Toda filosofia verdadeira busca
uma crítica justa e depende da continuidade do juízo público reflexivo.”
Uma excelente interpretação histórica
de grandes autores e o quanto suas obras contribuíram e ainda contribuem na reflexão
sobre os temas que John Rawls nos apresenta.
(Grifos e destaques meus)
______.
RAWLS, John. Lectures on the history of moral philosophy. Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 2000.
_________. História da Filosofia Moral. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
Sobre o tema. e algumas obras de Immanuel Kant:
CUNHA, Bruno. A gênese da ética em Kant. São
Paulo: Editora LiberArs, 2017.
KANT, Immanuel. Lições de ética. Trad. Bruno Cunha
e Charles Fedhaus. São Paulo: Editora Unesp, 2018.
______. Lições sobre a doutrina filosófica da
religião. Trad. Bruno Cunha. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.
______. Anthropology from a pragmatic point of
view. Carbondale, III: Southern Illinois University Press. 1996.
eBook., Base de dados: eBook Collection (EBSCOhost).
______. Antropologia de um ponto de vista pragmático.
Trad. Clélia Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006.
______. Crítica da razão prática. Tradução
de Valério Rohden. São Paulo, Martins Fontes, 2002.
KANT, Immanuel. Fundamentação
da metafísica dos costumes. São Paulo: Discurso editoria: Barcarola,
2009
______. A metafísica dos costumes. Trad.,
apresentação e notas de José Lamego. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2011.
O’NEILL, Onora. Constructions of Reason: explorations
of Kant's practical philosophy. Cambridge University Press, 1990.
TORRES, José Carlos Brum
(Org.). Manual de ética: questões
de ética teórica e aplicada. Petrópolis, RJ: Vozes; Caxias do sul: Universidade
de Caxias do Sul: BNDES, 2014.
TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre ética. 5. ed. revista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
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