Os chamados “exercícios”, propostos
por Hadot (2001), estão ligados ao que encontramos, em certa medida,
com cuidado, na obra dos estoicos e de Epicteto: “exercício da consciência de si", como um “exercício da atenção” a si mesmo.
Em “Diatribes. Livro IV. XII), o
capítulo inteiro é sobre a atenção (prosoché-
περί προσοχῆς).
Neste sentido, na
“reflexão matinal” de hoje, retomo ideias de um ouyro texto, que escrevi aqui no Blog, sobre a prosoché: uma “prática que silencia o ruído que existe dentro de nós”[1]. Tantas "coisas podem nos distrair"[2] Não são poucas as vezes em
que nos deixamos arrastar pelo que já aconteceu num remoto passado. Prendemo-nos
às "velhas memórias e
experiências."[3]
Quanto ao futuro, pode-se dizer o mesmo, a ansiedade que nos causa projetarmos
daqui para lá.
Se queremos, portanto,
mudar isso, devemos criar uma nova atmosfera interior. O primeiro passo é
não começar, jamais, tentando mudar o mundo ou as demais pessoas. Nossa
prioridade deve ser encontrarmos um espaço de tranquilidade interior,
aprendermos mais sobre nós mesmos. Isso inclui tentar reconhecer e compreender
limites e imperfeições.
A "atenção" (prosoché) é o elemento para evitarmos
que a razão se desvie no caminho das representações brutas. Servirá,
se o indivíduo mantiver isso em mente, para ajudar a razão a reordená-las e
redirecioná-las para a autotransformação. E, principalmente nessa difícil
caminhada, na consecução da aplicação dos princípios básicos (Theoremata[4])...
“[LII.1] O
primeiro e mais necessário tópico da filosofia é o da aplicação dos princípios,
por exemplo: “Não sustentar falsidades”. O segundo é o das demonstrações, por
exemplo: “Por que é preciso não sustentar falsidades?” O terceiro é o que é
próprio para confirmar e articular os anteriores, por exemplo: “Por que isso é
uma demonstração? O que é uma demonstração? O que é uma consequência? O que é
uma contradição? O que é o verdadeiro? O que é o falso?” [LII.2] Portanto, o
terceiro tópico é necessário em razão do segundo; e o segundo, em razão do
primeiro – mas o primeiro é o mais necessário e onde é preciso se demorar.
Porém, fazemos o contrário: pois no terceiro despendemos nosso tempo, e todo o
nosso esforço é em relação a ele, mas do primeiro descuidamos por completo. Eis
aí porque, por um lado, sustentamos falsidades e, por outro, temos à mão como
se demonstra que não é apropriado sustentar falsidades”[5]
Retomando a ideia de Pierre Hadot, já estudada aqui, sobre o que chamou de “exercícios espirituais” faço, na reflexão matinal de hoje nova leitura do tema, acrescentando as “técnicas” da TCC, a partir das propostas
de Ronald Robertson[6]
nessa área:
Meditação
matinal: (que aqui, no Blog, tenho adotado como (“Reflexão matinal”). Pense no sol nascente, nas estrelas e em seu pequeno espaço dentro
de todo o universo. Repasse mentalmente os principais eventos do dia, imaginando
como Sócrates, Zenão e Marco Aurélio ou seu próprio modelo pessoal[7] lidariam com hábitos e
desejos. Imagine como você planeja lidar com quaisquer desafios e quais
recursos ou virtudes internos você pode empregar. (p. 163-164)
Durante o dia: Pratique “mindfulness” (que prefiro a
definição por “mente desperta” –ou seja, um estado em que estamos conscientes
do que se passa com o corpo e a mente; em que estamos no controle dos
pensamentos e a nossas emoções (parece-me bem próximo de prosoché- περί προσοχῆς, dos
estoicos). No “mindfulness estoico, buscando sinais iniciais de alerta dos
hábiros e desejos que você deseja superar. Tente identifica-los pela raiz. Faça
uma pausa e pratique a aceitação de qualquer sentimento de desconforto com a
indiferença estoica. Mantenha distância cognitiva de seus pensamentos e evite agir
de acordo com seus sentimentos. Em vez disso, ocupa-se com comportamentos
substitutos saudáveis, que contribuam para um verdadeiro sentimento de
satisfação. Você também pode manter um registro escrito ou planilha com certos
hábitos, conforme descrito neste capítulo.” (p. 164)
Meditação
noturna: (que já, há algum tempo aqui no Blog, adoto
como “meditação retrospectiva
noturna”. “No final do dia, revise como você se saiu com relação ao
que diz respeito a agir de acordo com seus valores _ isto é, virtudes. Em
relação aos desejos, considere o que você fez bem, o que fez mal e o que
poderia fazer de maneira diferente amanhã. Se isso ajudar, ima gine responder a
essas perguntas perante um sábio mentor estoico ou mesmo uma banca de sábios, e
considere que conselhos eles podem lhe dar. Use o que aprendeu para ajudar a
preparar a meditação da manhã seguinte.” (p. 164)
Epicteto, nessa meta nos
sugere:
"Pergunte-se o seguinte no início da manhã:
O que está faltando para que eu me liberte da paixão?
E para alcançar a tranquilidade?
O que sou eu?
Um corpo, um dono de propriedades ou uma reputação?
Nenhuma dessas coisas.
O que, então?
Um ser racional.
O que, então, é exigido de mim?
Meditar sobre as minhas ações.
Como eu me afastei da serenidade?
O que eu fiz de hostil, indiferente e não-social?
O que eu falhei em fazer em todos esses momentos?”
Outra importante recomendação "estoica", para “meditação retrospectiva noturna”, que aliás sobre isso, já encontrei proposta semelhante em autores como Agostinho de Hipona e outros[8].
Por exemplo, nos “Versos
dourados”, enquanto lia HADOT (1999) e EPICTÈTE (2002), recolhi
esse preceito:
“Não deixe teu sono cair sobre seus olhos lassos
Antes de ter pesado todos os atos do dia:
Em que falhei? Que fiz, qual dever omiti?
Começa por aí e prossegue o exame: após o que
Condena o malfeito, alegra-te pelo Bem.”[9]
Enfim, no início deste texto, o que eu pretendia, basicamente, era anotar alguma ideias a partir de leitura de obras de Robertson, sobre a relação estoicismo e TCC. Acrescentei alguns pontos em que o autor discute a importância que ele vê na Terapia Cognitivo-comportamental e por que os "psicoterapeutas modernos" deveriam ocupar-se mais com filosofia, especialmente filosofia antiga? E, por que os filósofos deveriam interessar-se por psicoterapia?
Para Robertson, há vários elementos de contato entre as duas áreas, ainda que bastante distintas entre si e que sem dúvidas, nem sempre foi clara tal distinção. Considera que, ao reconsiderar a sabedoria geralmente recebida sobre a história desses assuntos intimamente relacionados, podemos aprender muito sobre filosofia e psicoterapia, inclusive sobre concepções como "auto-ajuda" e "desenvolvimento pessoal".
Portanto, o meu interesse pela obra de Donald Robetson e demais autores que citei brevemente, está totalmente ligado a dois pontos que tenho estudado nos escritos que estes autores tem produzido.
E, anoto para encerrar, estes dois pontos:
- Como
ele investiga a sabedoria antiga, especialmente o Estoicismo, nessa
relação entre filosofia e psicoterapia
- Como sua investigação sobre
“desenvolvimento pessoal” não desembocaria numa simplória
“auto-ajuda”?
Uma boa reflexão a ser feita mais vezes...
______.
Informações sobre TCC:
“Why should modern psychotherapists be interested in philosophy, especially ancient philosophy? Why should philosophers be interested in psychotherapy? There is a sense of mutual attraction between what are today two thoroughly distinct disciplines. However, arguably it was not always the case that they were distinct. The author takes the view that by reconsidering the generally received wisdom concerning the history of these closely-related subjects, we can learn a great deal about both philosophy and psychotherapy, under which heading he includes potentially solitary pursuits such as ‘self-help’ and ‘personal development’.” [10]
...
Sobre o Autor: “Donald Robertson is an integrative psychotherapist and trainer, who specializes in the treatment of anxiety and the use of cognitive-behavioral approaches to clinical hypnotherapy. He is the author of a number of articles on philosophy and psychotherapy in professional journals, and the forthcoming book, The Discovery of Hypnosis, The Collected Writings of James Braid. Donald's background in academic philosophy has helped him to appreciate the relationship between modern psychotherapy and ancient philosophy,”
LINK:
______.
REFERÊNCIAS E SUGESTÕES DE LEITURA
BECK, Judith S. Terapia cognitiva: teoria e prática. Porto Alegre, RS, 2997.
DINUCCI, A.;
JULIEN, A. O Encheiridion de Epicteto. Coimbra: Imprensa
de Coimbra, 2014.
______. Epictetus Discourses. Trad.
Dobbin. Oxford: Clarendon, 2008.
______. Testemunhos e Fragmentos. Trad. Aldo
Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão: EdiUFS, 2008.
______. The Discourses of Epictetus as
reported by Arrian; fragments: Encheiridion. Trad.
Oldfather. Harvard: Loeb, 1928. https://www.loebclassics.com/
GAZOLLA,
Rachel. O ofício do filósofo
estóico: o duplo registro do discurso da Stoa, Loyola, São Paulo,
1999.
HADOT, Pierre. The inner citadel: the meditations of
Marcus Aurelius. London: Harvard TUniversity Press, 2001.
______. A
filosofia como maneira de viver: entrevistas de Jeannie Carlier e
Arnold I. Davidson. (Trad. Lara Christina de Malimpensa). São Paulo: É
Realizações, 2016
______. Exercícios
espirituais e filosofia antiga. Trad. Flávio Fontenelle Loque, Loraine
Oliveira. São Paulo: É Realizações, Coleção Filosofia Atual, 2014.
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poder da quietude em um mundo barulhento. Rio de Janeiro, RJ: Harper Collins,
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KARDEC, A. Le Livre des
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Feb, 2013. (Q. 625).
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Gérard. O conceito de paixão. In: NOVAES, Adauto
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Letras, 1987.
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Paulo: Abril Cultural, 1973.
RANGÉ, Bernard. Psicoterapias Cognitivo-Comportamentais: Um Diálogo com a Psiquiatria. 2. ed. Porto Alegre: Grupo A - Selo: Artmed, RS, 2011.
ROBERTSON, Donald. The Philosophy of Cognitive
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Maya Guimarães. Porto Alegre: Citadel Editora, 2020.
______. How
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Martin's Press, 2019.
SÊNECA, Lúcio Aneu. Cartas a
Lucílio. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2014.
[1] HANH, Thich Nhat. Silêncio: o poder da
quietude em um mundo barulhento. Rio de Janeiro, RJ: Harper Collins, 2018.
[2] Idem;Ibidem.
[3] Idem;Ibidem.
[4] DINUCCI, A.; JULIEN, A. O Encheiridion de Epicteto. Coimbra: Imprensa de Coimbra, 2012.
[5] Idem; Ibidem.
[6] ROBERTSON, Donald. Pense
como um imperador. Trad.
Maya Guimarães. Porto Alegre: Citadel Editora, 2020.
[7] No meu caso, específico o o “modelo pessoal” sigo LE: 625: KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d. (dépôt légal 1985). (O Livro dos Espíritos. Trad. Guillon Ribeiro, ______. O livro dos Espíritos. 93. ed. - 1. reimpressão (edição histórica). Brasília, DF: Feb, 2013. (Q. 625).
[8] KARDEC,
A. Le Livre des Esprits. 2013. (Q.919-919a).
[9] PORFÍRIO.
"Vida de Pitágoras". § 40; Epicteto. Entretiens. III,
10. 3 (tradução para o francês: Souilhé)).
[10] ROBERTSON,
Donald. (2020)
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