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“Quando discernires que deves fazer
alguma coisa, faz. Jamais evites ser visto fazendo-a, mesmo que a maioria
suponha algo diferente sobre <a ação>. Pois se não fores agir
corretamente, evita a própria ação. Mas se <fores agir> corretamente, por
que temer os que te repreenderão incorretamente?” (Epicteto.
Encheirídion. XXXV. Trad. A. Dinucci
e A. Julien, 2012)
Nos intervalos dos
trabalhos, prosseguindo com os estudos das obras “O Encheirídion” de
Epicteto e as “Meditações” do imperador Marco Aurélio, tenho
aprendido a maneira de se conceber a filosofia como “exercício”, como defendia Hadot (2014), , como fim
a ser buscado para mudança interior de quem se aprofunde em reflexões
filosóficas nessa chave de interpretação.
Como já disse aqui,
nesse blog, O Encherídion reúne pensamentos e máximas de
Epicteto organizadas por Arriano, seu discípulo, com o objetivo de preparar o
aprendiz de filósofo para uma vida filosófica orientada à prática.
As Meditações (tá eís eautóv) de Marco Aurélio também são
desse tipo; "exercícios espirituais" escritos, sobre certos
temas que foram refletidos por Epicteto e que o Imperador usou para orientar-se
na mudança interior à medida que a vida assim o exigisse.
Importante aqui, é tomar
a ideia da prática de “exercícios espirituais” como esforço, disposição em
se alcançar alguma coisa. Nesse caso, esforçar-se na aquisição
de virtudes. Daí a ideia para esse texto nesta manhã, de caminhar pela
vida, “passear sozinho” e enveredar por conversas íntimas; tarefa
complexa e por vezes penosa, mas a meta é buscada no sentido de
aperfeiçoar corpo e a alma.
Por trás dessa reflexão,
considerando a noção de “exercícios espirituais” está a importância
da filosofia como ascese (áskesis) e conversão (metastrophé) em
Epicteto e Marco Aurélio, que retomarei em texto com objetivos mais
acadêmicos; aqui faço somente os esboços para reflexões posteriores.
Neste sentido, nas Diatribes,
Epicteto orienta sobre o caminho a seguir considerando um duplo aspecto,
característico dos seres humanos. Um, estaria mais próximo a sua natureza
animal e que precisa ser superada; outro, um parentesco com os deuses que
precisa ser desenvolvido.
Diz Epicteto:
"[…] Dois elementos foram
misturados em nossa gênese: o corpo, em comum com os animais, e a razão e a
inteligência, em comum com os Deuses. Alguns inclinam-se para o primeiro
parentesco, que é desafortunado e mortal. Alguns poucos, para o divino e
bem-aventurado. Já que é necessário que todo e qualquer homem use cada coisa
segundo o que supõe sobre ela, <é necessário que> aqueles poucos que
pensam ter nascido tanto para a confiabilidade e para a dignidade […] nada
sórdido ou abjeto suponham sobre si mesmos. […] Em razão desse parentesco,
<alguns> homens, ao se inclinarem <para a carne>, tornam-se
semelhantes aos lobos, desleais, traiçoeiros e nocivos. Outros,
<tornam-se> como os leões: agrestes, bestiais e selvagens. Mas muitos de
nós <tornam-se> raposas e, assim, o que há de não-afortunado entre os
animais. Pois que outra coisa é um homem malévolo e ofensivo senão uma
raposa ou algum outro <animal> mais não-afortunado e abjeto?
(Diatribes. 1.3.3-5,
7-8)"
Epicteto, apresenta
nessa Diatribe, uma reflexão bem interessante no sentido de se pensar no
ser humano que se inclinou para o seu lado animal e perdeu sua dimensão moral,
e é isso que considera como dificuldade que impede o homem, com esse desvio, de
não conseguir desenvolver o modo ético da realidade que o cerca, pois se não
desenvolver o seu caráter racional e moral, estará reduzido ao outro aspecto de
sua dupla característica: de um animal irracional que busca apenas satisfação dos
impulsos primários, desejos egoístas e apetites sensuais.
Temos lido, no entanto,
no Estoicismo e em Epicteto que há consequências para esse desvio. O ser
humano que cai nesse desvio, dominado por essa sua inclinação limita-se a uma
faixa inferior de suas possibilidades, e não conseguirá realizar a sua
verdadeira natureza racional, isso, para Epicteto, é que faz do ser humano, um
desleal, traiçoeiro, contrário do ser humano que se inclina a sua natureza
próxima aos deuses, como visto acima. Isso, segundo Epicteto, faria com que o ser humano
buscasse as Virtudes, a dignidade.
Dessa dupla natureza, aparentemente em "conflito", o
ser humano deve escapar buscando harmonizar seus impulsos sob o domínio da
razão.
“Se são verdadeiros os
ditos dos filósofos sobre o parentesco dos Deuses e dos homens, que outra coisa
resta aos homens que <repetir> o dito de Sócrates, que, quando se lhe
perguntava de que país era, jamais se dizia ateniense ou coríntio, mas cidadão
do Cosmos. Por que dizes tu mesmo ser ateniense e não unicamente declaras em que
canto do mundo o teu pequeno corpo foi lançado ao nascer? […] Portanto, por que
não chama a si mesmo de cidadão do Cosmos quem entendeu a administração do
Cosmos e aprendeu que “O maior, mais importante e mais universal sistema de
todos <é o composto> pelos homens e por Deus, do qual foram lançadas as
sementes que geraram não somente meu pai e meu avô, mas todas as coisas que
surgiram e cresceram sobre a terra, principalmente os seres racionais, porque
somente estes por natureza formam uma comunidade com Deus, entrelaçados pela
razão em uma vida em comum” (EPICTETO. Diatribes. 1.9.5)?
A partir disso, podemos
formular, como regra para cada ação, partirmos da necessidade de nos
aproximarmos da nossa natureza racional, que segundo Epicteto, operaria na harmonização
dos nos nossos impulsos, naturalmente em conflito.
______.
ARRIANO
FLÁVIO. O Encheirídion de Epicteto. Edição Bilíngue. Tradução do
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