domingo, 3 de novembro de 2019

REFLEXÃO MATINAL LX: EPICTETO E A HARMONIZAÇÃO DOS IMPULSOS

Ponte.    Eu não estou com muita concentração hoje. Estou sob pressão isso me dificulta. Deleta erros de escrita ou qualquer frase que te magoe. Estou relendo varias vezes mas não estou conseguindo saber se o que estou escrevendo está fazendo sentido. Qualquer coisa é só me deixar só, eu vou entender.
(IMAGEM: "Pinterest")


“Quando discernires que deves fazer alguma coisa, faz. Jamais evites ser visto fazendo-a, mesmo que a maioria suponha algo diferente sobre <a ação>. Pois se não fores agir corretamente, evita a própria ação. Mas se <fores agir> corretamente, por que temer os que te repreenderão incorretamente?” (Epicteto. Encheirídion. XXXV. Trad. A. Dinucci e A. Julien, 2012)

Nos intervalos dos trabalhos, prosseguindo com os estudos das obras “O Encheirídion” de Epicteto e as “Meditações” do imperador Marco Aurélio, tenho aprendido a maneira de se conceber a filosofia como “exercício”, como defendia Hadot (2014), , como fim a ser buscado para mudança interior de quem se aprofunde em reflexões filosóficas nessa chave de interpretação.

Como já disse aqui, nesse blog, O Encherídion reúne pensamentos e máximas de Epicteto organizadas por Arriano, seu discípulo, com o objetivo de preparar o aprendiz de filósofo para uma vida filosófica orientada à prática. As Meditações (tá eís eautóv) de Marco Aurélio também são desse tipo; "exercícios espirituais" escritos, sobre certos temas que foram refletidos por Epicteto e que o Imperador usou para orientar-se na mudança interior à medida que a vida assim o exigisse.

Importante aqui, é tomar a ideia da prática de “exercícios espirituais” como esforço, disposição em se alcançar alguma coisa. Nesse caso, esforçar-se na aquisição de virtudes. Daí a ideia para esse texto nesta manhã, de caminhar pela vida, “passear sozinho” e enveredar por conversas íntimas; tarefa complexa e por vezes penosa, mas  a meta é buscada no sentido de aperfeiçoar corpo e a alma.

Por trás dessa reflexão, considerando a noção de “exercícios espirituais” está a importância da filosofia como ascese (áskesis) e conversão (metastrophé) em Epicteto e Marco Aurélio, que retomarei em texto com objetivos mais acadêmicos; aqui faço somente os esboços para reflexões posteriores.

Neste sentido, nas Diatribes, Epicteto orienta sobre o caminho a seguir considerando um duplo aspecto, característico dos seres humanos. Um, estaria mais próximo a sua natureza animal e que precisa ser superada; outro, um parentesco com os deuses que precisa ser desenvolvido.

Diz Epicteto:

"[…] Dois elementos foram misturados em nossa gênese: o corpo, em comum com os animais, e a razão e a inteligência, em comum com os Deuses. Alguns inclinam-se para o primeiro parentesco, que é desafortunado e mortal. Alguns poucos, para o divino e bem-aventurado. Já que é necessário que todo e qualquer homem use cada coisa segundo o que supõe sobre ela, <é necessário que> aqueles poucos que pensam ter nascido tanto para a confiabilidade e para a dignidade […] nada sórdido ou abjeto suponham sobre si mesmos. […] Em razão desse parentesco, <alguns> homens, ao se inclinarem <para a carne>, tornam-se semelhantes aos lobos, desleais, traiçoeiros e nocivos. Outros, <tornam-se> como os leões: agrestes, bestiais e selvagens. Mas muitos de nós <tornam-se> raposas e, assim, o que há de não-afortunado entre os animais. Pois que outra coisa é um homem malévolo e ofensivo senão uma raposa ou algum outro <animal> mais não-afortunado e abjeto? 
(Diatribes. 1.3.3-5, 7-8)"

Epicteto, apresenta nessa Diatribe, uma reflexão bem interessante no sentido de se pensar no ser humano que se inclinou para o seu lado animal e perdeu sua dimensão moral, e é isso que considera como dificuldade que impede o homem, com esse desvio, de não conseguir desenvolver o modo ético da realidade que o cerca, pois se não desenvolver o seu caráter racional e moral, estará reduzido ao outro aspecto de sua dupla característica: de um animal irracional que busca apenas satisfação dos impulsos primários, desejos egoístas e apetites sensuais.

Temos lido, no entanto, no Estoicismo e em Epicteto que há consequências para esse desvio. O ser humano que cai nesse desvio, dominado por essa sua inclinação limita-se a uma faixa inferior de suas possibilidades, e não conseguirá realizar a sua verdadeira natureza racional, isso, para Epicteto, é que faz do ser humano, um desleal, traiçoeiro, contrário do ser humano que se inclina a sua natureza próxima aos deuses, como visto acima. Isso,  segundo Epicteto, faria com que o ser humano buscasse as Virtudes, a dignidade.

Dessa dupla natureza, aparentemente em "conflito", o ser humano deve escapar buscando harmonizar seus impulsos sob o domínio da razão.

“Se são verdadeiros os ditos dos filósofos sobre o parentesco dos Deuses e dos homens, que outra coisa resta aos homens que <repetir> o dito de Sócrates, que, quando se lhe perguntava de que país era, jamais se dizia ateniense ou coríntio, mas cidadão do Cosmos. Por que dizes tu mesmo ser ateniense e não unicamente declaras em que canto do mundo o teu pequeno corpo foi lançado ao nascer? […] Portanto, por que não chama a si mesmo de cidadão do Cosmos quem entendeu a administração do Cosmos e aprendeu que “O maior, mais importante e mais universal sistema de todos <é o composto> pelos homens e por Deus, do qual foram lançadas as sementes que geraram não somente meu pai e meu avô, mas todas as coisas que surgiram e cresceram sobre a terra, principalmente os seres racionais, porque somente estes por natureza formam uma comunidade com Deus, entrelaçados pela razão em uma vida em comum” (EPICTETO. Diatribes. 1.9.5)?

A partir disso, podemos formular, como regra para cada ação, partirmos da necessidade de nos aproximarmos da nossa natureza racional, que segundo Epicteto, operaria na harmonização dos nos nossos impulsos, naturalmente em conflito.

______.

ARRIANO FLÁVIO. O Encheirídion de Epicteto. Edição Bilíngue. Tradução do texto grego e notas Aldo Dinucci; Alfredo Julien. Textos e notas de Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão. Universidade Federal de Sergipe, 2012).

CÍCERO. On Duties. Trad. W. Miller. Harvard: Loeb Classical Library, 1913.

______. On the Nature of the Gods. Academics.Trad. H. Rackham. Harvard: Loeb Classical Library, 1933.

______. De Finibus. Bonorum Et Malorum. Trad. H. Rackham. Harvard: Loeb Classical Library, 1914.

______. Letters to Friends. Volume I: Letters 1-113. Trad. B. Shackleton. Harvard: Loeb, 2001

DESCARTES, René.  As paixões da alma. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

DIÓGENES LAÉRCIO. Lives of Eminent Philosophers. vol. I, II.Trad. R. D. Hicks. Harvard: Loeb Classical Library, 1925.

DINUCCI, A.; JULIEN, A. O Encheiridion de Epicteto. Coimbra: Imprensa de Coimbra, 2014.

EPICTETO. Entretiens. Livre I. Trad. Joseph Souilhé. Paris: Les Belles Lettres, 1956.

______. Epictetus Discourses. Book I. Trad. Dobbin. Oxford: Clarendon, 2008.

______. Testemunhos e Fragmentos. Trad. Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão: EdiUFS, 2008.

EPICTETUS. The Discourses of Epictetus as reported by Arrian; Fragments; Encheiridion. Trad. Oldfather. Harvard: Loeb, 1928.

FREUD, Sigmund. Os instintos e suas vicissitudes. In: A história do movimento psicanalítico, Artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos (1914–1916). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume XIV. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
HADOT, Pierre. The inner citadel: the meditations of Marcus Aurelius. London: Harvard University Press, 2001.
______. A filosofia como maneira de viver: entrevistas de Jeannie Carlier e Arnold I. Davidson. (Trad. Lara Christina de Malimpensa). São Paulo: É Realizações, 2016.
______. Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga. Trad. Flavio Fontenelle Loque e Loraine Oliveira. Prefácio de Davidson, Arnold. São Paulo: É Realizações, 2014. 

JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. 7. ed. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 2013. (Obras completas, Vol. 6). 

SCHILLER, J. C. Friedrich. Cartas sobre a educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras, 1995.

SÉNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2014.

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