domingo, 1 de dezembro de 2019

REFLEXÃO MATINAL LXVII: AS PAIXÕES

uma escada
(IMAGEM: Pinterest)

“[XXVII] Ὥσπερ σκοπὸς πρὸς τὸ ἀποτυχεῖν οὐ τίθεται, οὕτως οὐδὲ κακοῦ φύσις ἐν κόσμῳ γίνεται.

[27.1] Do mesmo modo que um alvo não é fixado para não ser atingido, assim também a natureza do mal não existe no cosmos.” EPICTETO, 2012)

Revisitando velho e recorrente tema...

Geralmente, em filosofia, Aristóteles e Platão podem ser vistos como os primeiros pensadores a tratarem detidamente o tema da "paixões", e seu papel na constituição do ser humano. Para eles, as paixões se apresentam como obstáculos na obtenção do verdadeiro conhecimento, Platão chega a equiparar paixões e doenças, por exemplo.  Na Modernidade, autores da área da Psicologia, tentam explicar os mecanismos para o funcionamento e consequências destas para conduta do ser humano. Na Filosofia, portanto, vários outros filósofos se dedicaram ao tema. Por exemplo: Cícero, Henri Bergson, René. Descartes, J.-J. Rousseau, Thomas Hobbes, Baruch Spinoza, Immanuel Kant, David Hume, Michel de Montaigne, Nicolau Maquiavel. Voltaire e outros.

No final do texto, acrescento uma nota de rodapé, referente ao que tenho refletido sobre o tema, há alguns anos; saindo do campo específico do texto, que é um esforço de continuidade nas reflexões sobre o tema na filosofia e na psicologia, conforme autores listados no parágrafo acima.

Na Ética a Nicômaco, capítulo 3 do livro 1, Aristóteles aponta elementos sobre como deve ser estudado o assunto das paixões. Ele mesmo, parece reconhecer os limites e a dificuldade em se traçar um estudo definitivo.

A quem pretenda estudar o assunto, Aristóteles sugere uma conduta que reconheça a dificuldade em se apresentar argumentos definitivos; conclusões apressadas. A razão não pode tudo, nesse assunto. As paixões, segundo Aristóteles, deixam, mesmo assim, abertas as possibilidades para nosso autogoverno. Como lemos em Lebrun (1987):

“O virtuoso, [ao invés de refrear as paixões], age corretamente, mas em harmonia com suas paixões, porque ele as dominou de uma vez por todas. Não só aprendeu a agir de modo conveniente, mas a sentir o páthos adequado” (LEBRUN, 1987, p. 20).

Raciocínio bem próximo, tenho estudado nas obras de pensadores estoicos como as de Epicteto, Musônio Rufo, Sêneca e Marco Aurélio.

Ou seja: na obra de Aristóteles, a discussão sobre as paixões é fundamental na formação de indivíduo virtuoso. Para ele, o homem é responsável pela autoeducação das tendências naturais; o mau uso ou usá-las para o bem e virtude, é responsabilidade de cada um. Alcançar a virtude, portanto, seria o resultado do exercício constante da razão pelo homem. Ainda nos diz, Lebrun:

“Devemos aprender a viver em conformidade com o lógos, mas sem esquecer que as paixões continuam sendo a matéria de nossa conduta – e que só a propósito de seres passionais se pode falar em conduta razoável. Paixão e razão são inseparáveis, assim como a matéria é inseparável da obra e o mármore da estátua (LEBRUN, 1987, p. 22).”

Resta-nos assim, em relação à paixões, enfrentarmos a questão da autoeducação e dominá-las. E, acima de tudo, bem conduzí-las![1]

"[5a] As coisas não inquietam os homens, mas as opiniões sobre as coisas." (EPICTETO, 2012)

______.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1987 (col. Os Pensadores).

ARRIANO FLÁVIO. O Encheirídion. Edição Bilíngue. Tradução do texto grego e notas Aldo Dinucci; Alfredo Julien. Textos e notas de Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão. Universidade Federal de Sergipe, 2012).

CÍCERO. On ends (The Finibus). Tradução de H. Rackham. Harvard: https://www.loebclassics.com, 1914.

DESCARTES, R. Oeuvres. Org. C. Adam e P. Tannery. Paris: Vrin, 1996. 11v. [indicadas no texto como Ad & Tan]

_______. Descartes: oeuvres et lettres. Org. André Bidoux. Paris:
Gallimard, 1953. (Pléiade).

______. Discursos do Método; Meditações metafísicas; Objeções e Respostas; As Paixões da Alma; Cartas. (Introdução de Gilles-Gaston Granger; prefácio e notas de Gerard Lebrun; Trad. de J. Guinsberg), Bento Prado J. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os Pensadores).

EPICTÉTE. Entretiens. Livre I, II, III, IV. Trad. Joseph Souilhé. Paris: Les Belles Lettres, 1956.
______. Epictetus Discourses. Trad. Dobbin. Oxford: Clarendon, 2008.

______. O Encheirídion de Epicteto. Trad. Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão: EdiUFS, 2012. (Edição Bilíngue).

______. Testemunhos e Fragmentos. Trad. Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão: EdiUFS, 2008.

______. The Discourses of Epictetus as reported by Arrian; fragments: Encheiridion. Trad. Oldfather. Harvard: Loeb, 1928.  https://www.loebclassics.com/

HANH, Thich Nhat. Meditação andando: guia para a paz interior. 21. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

KANT, Immanuel. Vorlesung über die philosophische Encyclopädie. In: Kant gesalmmelte Schriften, XXIX, Berlin, Akademie, 1980, pp. 8 e 12).

KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos. 93. ed. 1. reimpressão. (edição histórica). Brasília: FEB, 2013 (907-912).

KEELING, Eva; PITTELOUD, Lucca. Psychology and Ontology in Plato. Springer, 2019.

LEBRUN, Gérard. O conceito de paixão. In: NOVAES, Adauto (org.). Os sentidos da paixão. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.

MARCO AURÉLIO. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Livro II. 1).

PLATÓN. Carta VII, In: Diálogos VII (Dudosos, Apócrifos, Cartas). Madrid: Gredos, 1992.

PRICE, A. W. Conflito mental. Campinas, SP: Ed. Papirus, 1998.

______. Mental conflict. London: Ed. Routledge, 1995

______. "Love and Friendship in Plato and Aristotle". Oxford Clarendon Press, 1989.

______. Contextuality in Practical Reason. (Oxford: Clarendon Press, 2008).

______. Virtue and Reason in Plato and Aristotle. Oxford University Press. 2011.

RICOUER, Paul. Ser, essência e substância em Platão e Aristóteles. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

SCHLEIERMACHER, F. D. E. Introdução aos Diálogos de Platão. Belo Horizonte, MG: Ed. UFMG, 2018.

TEIXEIRA, L. Ensaio sobre a Moral de Descartes. 1955. 222p. Tese (Cátedra) – Faculdade de Filosofia Ciências e Letras. São Paulo, 1955.

ZINGANO, Marco. Aristóteles: tratado da virtude moral. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.



[1] Ainda, só para reflexão pessoal: li, na obra do século XIX, do autor francês Allan Kardec (2013), o seguinte:
“907. Será intrinsecamente mau o princípio originário das paixões, embora esteja na Natureza?
“Não; a paixão está no excesso de que se acresceu a vontade, visto que o princípio que lhe dá origem foi posto no homem para o bem, tanto que as paixões podem levá-lo à realização de grandes coisas. O abuso que delas se faz é que causa o mal.”
908. Como se poderá determinar o limite onde as paixões deixam de ser boas para se tornarem más?
“As paixões são como um corcel, que só tem utilidade quando governado, e que se torna perigoso quando passa a governar. Uma paixão se torna perigosa a partir do momento em que deixais de poder governá-la, e que dá em resultado um prejuízo qualquer para vós mesmos ou para outrem.”


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