sábado, 20 de novembro de 2021

REFLEXÃO MATINAL C: O QUE É O HOMEM E O QUE LHE CABE REALIZAR?

 

(IMAGEM: "Pinterest")

“É entusiasmante pensar que a natureza humana será sempre melhor desenvolvida e aprimorada pela educação, e que é possível chegar a dar àquela forma, a qual em verdade convém à humanidade. Isso abre perspectiva para uma futura felicidade da espécie humana.” (KANT, 1999. p. 16-17)

Pausa na oficina, depois de ter estudado "Do ideal de sumo bem como um fundamento determinante do fim último da razão pura'segunda seção da Crítica da Razão pura'", aproveito para a reflexão matinal. 

Ora, um dia desses, outra vez andei pensando nessa questão que hoje, bem cedinho, retornei a ela como já faço sempre aqui, nas páginas deste blog. Assim, portanto, dediquei o início da manhã a re-pensar sobre a “progressão do Espírito" (cf. LE 100-127) acrescido de serenidade:

"Se, pois, para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo e tudo o mais é desejado no interesse desse fim; e se é verdade que nem toda coisa desejamos com vistas em outra (porque, então, o processo se repetiria ao infinito, e inútil e vão seria o nosso desejar), evidentemente tal fim será o Bem, ou antes, o Sumo Bem." (ARISTÓTELES. 1984).

...

Sumo Bem como “fim” exige que nosso esforço seja no sentido de não desperdiçarmos o já alcançado. Que o já conquistado seja preservado num abraço resoluto na busca das virtudes.

De olho no conjunto, faz-se necessário que nos sustentemos em fundamentos sólidos, perenes, nos avanços de si, por si, para si. É, portanto, nosso dever a impormo-nos o tornar mais nobre o que há muito é desejado e buscado. Já existe, em certa medida; ainda fragmentado, disperso e necessita unidade.

Ou seja: é melhor abandonar o que não somos nós, o que não é tarefa nossa. Neste sentido, a recomendação de Epicteto:

[48.b2] ὄρεξιν ἅπασαν ἦρκεν ἐξ ἑαυτοῦ· τὴν δ' ἔκκλισιν εἰς μόνα τὰ παρὰ φύσιν τῶν ἐφ' ἡμῖν μετατέθεικεν. ὁρμῇ πρὸς ἅπαντα ἀνειμένῃ χρῆται. ἂν ἠλίθιος ἢ ἀμαθὴς δοκῇ, οὐ πεφρόντικεν. ἐνί τε λόγῳ, ὡς ἐχθρὸν ἑαυτὸν παραφυλάσσει καὶ ἐπίβουλον.

[48.b2] Retira de si todo o desejo e transfere a repulsa unicamente para as coisas que, entre as que são encargos nossos, são contrárias à natureza. Para tudo, faz uso do impulso amenizado. Se parecer insensato ou ignorante, não se importa. Em suma: guarda-se atentamente como um inimigo traiçoeiro”.

E, Kant diz em: "Do ideal de sumo bem como um fundamento determinante do fim último da razão pura", que me motivou a escrever esse texto breve para reflexão pessoal.

"Todo o interesse da minha razão (tanto especulativa como prática) concentra-se nas seguintes três interrogações:

Que posso saber?

Que devo fazer?

Que me é permitido esperar?

[...]

primeira questão é simplesmente especulativa. Esgotamos (e disso me ufano) todas as respostas possíveis e encontramos enfim aquela com a qual a razão é obrigada a contentar-se e, mesmo quando não se ocupa do interesse prático, também tem motivo para estar satisfeita; mas ficamos tão distanciados dos dois grandes fins para onde está orientado todo o esforço da razão pura, como se por comodidade tivéssemos renunciado desde o princípio a este trabalho. Se portanto, se trata do saber, é pelo menos seguro e está bem estabelecido que, em relação a estas duas perguntas, nunca poderemos saber algo.

segunda interrogação é simplesmente prática. É certo que, como tal, pode pertencer à razão pura, mas não é transcendental, é moral, e, por conseguinte, não pode em si mesma fazer parte da nossa crítica.

terceira interrogação: Se faço o que devo fazer, que me é permitido esperar? é ao mesmo tempo prática e teórica, de tal modo que a ordem prática apenas serve de fio condutor para a resposta à questão teórica e, quando esta se eleva, para a resposta à questão especulativa. Com efeito, toda a esperança tende para a felicidade e está para a ordem prática e para a lei moral, precisamente da mesma forma que o saber e a lei natural estão para o conhecimento teórico I das coisas. A esperança leva, por fim, à conclusão que alguma coisa é (que determina o fim último possível), porque alguma coisa deve acontecer; o saber, à conclusão que alguma coisa é (que age como causa suprema) porque alguma coisa acontece.

A felicidade é a satisfação de todas as nossas inclinações (tanto extensive, quanto à sua multiplicidade, como intensive, quanto ao grau e também protensive, quanto à duração). Designo por lei pragmática (regra de prudência) a lei prática que tem por motivo a felicidade; e por moral (ou lei dos costumes), se existe alguma, a lei que não tem outro móbil que não seja indicar-nos como podemos tornar-nos dignos da felicidade. A primeira aconselha o que se deve fazer se queremos participar na felicidade; a segunda ordena a maneira como nos devemos comportar para unicamente nos tornarmos dignos da felicidade. A primeira funda-se em princípios empíricos; pois, a não ser pela experiência, não posso saber quais são as inclinações que querem ser satisfeitas, nem quais são as causas naturais que podem operar essa satisfação. A segunda faz abstração de inclinações e meios naturais de as satisfazer e considera apenas a liberdade de um ser racional em geral e as condições necessárias pelas quais somente essa liberdade concorda, segundo princípios, com a distribuição da felicidade e, por conseqüência, pode pelo menos repousar em simples idéias da razão pura e ser conhecida a priori.

Admito que há, realmente, leis morais puras que determinam completamente a priori o fazer e o não fazer (sem ter em conta os móbiles empíricos, isto é, a felicidade), ou seja, o uso da liberdade de um ser racional em geral e que estas leis comandam de uma maneira absoluta (não meramente hipotética, com o pressuposto de outros fins empíricos) e portanto são, a todos os títulos, absolutas. Posso pressupor esta proposição recorrendo não só às provas dos moralistas mais esclarecidos mas ao juízo moral de todo o homem, quando quer pensar claramente semelhante lei"

Aferindo resultados práticos

“Aquele que progride é quem aprendeu dos filósofos que o desejo é pelas coisas boas e que a repulsa é pelas coisas más; é o que aprendeu também que a serenidade e a privação de sofrimento (tó euroyn kaí apathés) não advêm de outro modo ao homem senão assegurando o desejo e evitando o repulsa [...] Como, portanto, concordamos ser a virtude algo tal e buscamos e exibimos progresso em outras coisas? Qual a obra da virtude? A serenidade (euróia)." (Epicteto. D. I, IV.)

A meta: com essas máximas tomadas como maneira de caminhar em busca das virtudes, o propósito é alcançar a eudaimonia (embora Kant critique a concepção de eudaimonia), chegar euroia [εὐροίας]: serenidade, com a recomendação de Epicteto, por exemplo: 

  1. apátheia (ἀπάθεια): ausência de paixões e,
  2. ataraxía (ἀταραξία):imperturbabilidade da alma.

Neste sentido, um modo de levar em frente o projeto tem sido acrescentar a leitura que Pierre Hadot fez da filosofia estoica. Ora, o que ele denominou “exercícios espirituais” tem possibilitado a reflexão e uma “metodologia” para uma verdadeira transformação do ‘si mesmo’ que muitos estoicos e o próprio Epicteto viam como “conversão” por ser uma ética profundamente vinculada a proairesis (προαίρεσις): escolhas: 

É nesse sentido, que prossigo esse estudo em meio ao restante: aperfeiçoar a proairesis é aperfeiçoar a nossa capacidade de escolha e como devemos bem viver.

Para Bem vivermos faz-se urgente, portanto, uma disciplina centrada na atenção de si e o cultivo da razão.

Portanto, apesar de tudo estar por realizar, ainda... Prossigamos. É tarefa do prokopton!

(Grifos e destaques meus)


______.

ARISTÓTELES. MetafísicaÉtica a Nicômaco; Poética. (Tradução Vincenzo Coceo, Leonel Vallandro e Gerd Bornheim e Eudoro de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1984.

ARRIANO FLÁVIO. O Encheirídion de Epicteto. Edição Bilíngue. Tradução do texto grego e notas Aldo Dinucci; Alfredo Julien. Textos e notas de Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão. Universidade Federal de Sergipe, 2012)

BECK, Judith S. Terapia cognitiva: teoria e prática. Porto Alegre, RS, 2997.

DINUCCI, A.; JULIEN, A. O Encheiridion de Epicteto. Coimbra: Imprensa de Coimbra, 2014.

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