“É
entusiasmante pensar que a natureza humana será sempre melhor desenvolvida e
aprimorada pela educação, e que é possível chegar a dar àquela forma, a qual em
verdade convém à humanidade. Isso abre perspectiva para uma futura felicidade
da espécie humana.” (KANT, 1999. p. 16-17)
Pausa na oficina, depois
de ter estudado "Do ideal de
sumo bem como um fundamento determinante do fim último da razão pura, 'segunda seção da Crítica da Razão pura'", aproveito
para a reflexão matinal.
Ora, um dia desses, outra
vez andei pensando nessa questão que hoje, bem cedinho, retornei a ela como já
faço sempre aqui, nas páginas deste blog. Assim, portanto, dediquei o
início da manhã a re-pensar sobre a “progressão do
Espírito" (cf. LE 100-127) acrescido de serenidade:
"Se,
pois, para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo e
tudo o mais é desejado no interesse desse fim; e se é verdade que nem toda
coisa desejamos com vistas em outra (porque, então, o processo se repetiria ao
infinito, e inútil e vão seria o nosso desejar), evidentemente tal fim será o
Bem, ou antes, o Sumo Bem." (ARISTÓTELES.
1984).
...
O Sumo Bem como “fim” exige que nosso esforço seja no
sentido de não desperdiçarmos o já alcançado. Que o já conquistado
seja preservado num abraço resoluto na busca das virtudes.
De olho no conjunto, faz-se necessário que nos sustentemos em fundamentos sólidos, perenes, nos avanços de si, por si, para si. É, portanto, nosso dever a impormo-nos o tornar mais nobre o que há muito é desejado e buscado. Já existe, em certa medida; ainda fragmentado, disperso e necessita unidade.
Ou seja: é melhor
abandonar o que não somos nós, o que não é tarefa nossa. Neste sentido, a
recomendação de Epicteto:
[48.b2] ὄρεξιν ἅπασαν
ἦρκεν ἐξ ἑαυτοῦ· τὴν δ' ἔκκλισιν εἰς μόνα τὰ παρὰ φύσιν τῶν ἐφ' ἡμῖν μετατέθεικεν.
ὁρμῇ πρὸς ἅπαντα ἀνειμένῃ χρῆται. ἂν ἠλίθιος ἢ ἀμαθὴς δοκῇ, οὐ πεφρόντικεν. ἐνί
τε λόγῳ, ὡς ἐχθρὸν ἑαυτὸν παραφυλάσσει καὶ ἐπίβουλον.
[48.b2] Retira de si todo o desejo e transfere a
repulsa unicamente para as coisas que, entre as que são encargos nossos, são
contrárias à natureza. Para tudo, faz uso do impulso amenizado. Se parecer
insensato ou ignorante, não se importa. Em suma: guarda-se atentamente como um
inimigo traiçoeiro”.
E, Kant diz em: "Do ideal de sumo bem como um fundamento determinante do fim último da razão pura", que me motivou a escrever esse texto breve para reflexão pessoal.
"Todo o interesse da
minha razão (tanto especulativa como prática) concentra-se nas seguintes três
interrogações:
Que posso saber?
Que devo fazer?
Que me é permitido
esperar?
[...]
A primeira questão é simplesmente
especulativa. Esgotamos (e disso me ufano) todas as respostas possíveis e
encontramos enfim aquela com a qual a razão é obrigada a contentar-se e, mesmo
quando não se ocupa do interesse prático, também tem motivo para estar
satisfeita; mas ficamos tão distanciados dos dois grandes fins para onde está
orientado todo o esforço da razão pura, como se por comodidade tivéssemos
renunciado desde o princípio a este trabalho. Se portanto, se trata do saber, é
pelo menos seguro e está bem estabelecido que, em relação a estas duas
perguntas, nunca poderemos saber algo.
A segunda interrogação é
simplesmente prática. É certo que, como tal, pode pertencer à razão pura, mas
não é transcendental, é moral, e, por conseguinte, não pode em si mesma fazer
parte da nossa crítica.
A terceira interrogação: Se faço o
que devo fazer, que me é permitido esperar? é ao mesmo tempo prática e teórica,
de tal modo que a ordem prática apenas serve de fio condutor para a resposta à
questão teórica e, quando esta se eleva, para a resposta à questão
especulativa. Com efeito, toda a esperança tende para a felicidade e
está para a ordem prática e para a lei moral, precisamente da mesma forma que o
saber e a lei natural estão para o conhecimento teórico I das coisas. A
esperança leva, por fim, à conclusão que alguma coisa é (que
determina o fim último possível), porque alguma coisa deve acontecer; o
saber, à conclusão que alguma coisa é (que age como causa suprema) porque
alguma coisa acontece.
A felicidade é a
satisfação de todas as nossas inclinações (tanto extensive, quanto à sua multiplicidade, como intensive, quanto ao grau e também protensive, quanto à duração). Designo
por lei pragmática (regra de prudência) a lei prática que tem por motivo
a felicidade; e por moral (ou lei dos costumes), se existe alguma, a lei
que não tem outro móbil que não seja indicar-nos como podemos tornar-nos dignos da felicidade. A primeira
aconselha o que se deve fazer se queremos participar na felicidade; a
segunda ordena a maneira como nos devemos comportar para unicamente nos
tornarmos dignos da felicidade. A primeira funda-se em princípios empíricos;
pois, a não ser pela experiência, não posso saber quais são as inclinações que
querem ser satisfeitas, nem quais são as causas naturais que podem operar essa
satisfação. A segunda faz abstração de inclinações e meios naturais de as
satisfazer e considera apenas a liberdade de um ser racional em geral e as
condições necessárias pelas quais somente essa liberdade concorda, segundo
princípios, com a distribuição da felicidade e, por conseqüência, pode pelo menos repousar em simples
idéias da razão pura e ser conhecida a priori.
Admito que há, realmente,
leis morais puras que determinam completamente a priori o fazer e o
não fazer (sem ter em conta os móbiles empíricos, isto é, a felicidade), ou
seja, o uso da liberdade de um ser racional em geral e que estas
leis comandam de uma maneira absoluta (não meramente hipotética, com
o pressuposto de outros fins empíricos) e portanto são, a todos os títulos,
absolutas. Posso pressupor esta proposição recorrendo não só às provas dos moralistas
mais esclarecidos mas ao juízo moral de todo o homem, quando quer pensar
claramente semelhante lei"
Aferindo resultados práticos:
“Aquele
que progride é quem aprendeu dos filósofos que o desejo é pelas coisas boas e
que a repulsa é pelas coisas más; é o que aprendeu também que a serenidade e a
privação de sofrimento (tó euroyn kaí
apathés) não advêm de outro modo ao homem senão assegurando o desejo e
evitando o repulsa [...] Como, portanto, concordamos ser a virtude algo tal e
buscamos e exibimos progresso em outras coisas? Qual a obra da virtude? A
serenidade (euróia)." (Epicteto. D. I, IV.)
A meta: com essas
máximas tomadas como maneira de caminhar em busca das virtudes, o propósito é
alcançar a eudaimonia (embora Kant critique a concepção de eudaimonia), chegar euroia [εὐροίας]: serenidade, com
a recomendação de Epicteto, por exemplo:
- apátheia (ἀπάθεια): ausência de paixões e,
- ataraxía (ἀταραξία):imperturbabilidade da alma.
Neste sentido, um modo de
levar em frente o projeto tem sido acrescentar a leitura que Pierre Hadot fez
da filosofia estoica. Ora, o que ele denominou “exercícios espirituais” tem
possibilitado a reflexão e uma “metodologia” para uma
verdadeira transformação do ‘si mesmo’ que muitos estoicos e o
próprio Epicteto viam como “conversão” por ser uma ética profundamente
vinculada a proairesis (προαίρεσις): escolhas:
É nesse sentido, que
prossigo esse estudo em meio ao restante: aperfeiçoar a proairesis é
aperfeiçoar a nossa capacidade de escolha e como devemos bem
viver.
Para Bem vivermos faz-se urgente,
portanto, uma disciplina centrada na atenção de si e
o cultivo da razão.
Portanto, apesar de tudo
estar por realizar, ainda... Prossigamos. É tarefa do prokopton!
(Grifos e destaques meus)
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