Foi assim, após a “meditação da manhã”, estudando e escrevendo um capítulo de livro e revisando outros textos para submissão, após ter apresentado um pequeno trabalho num evento sobre Estoicismo que, aproveitando a pausa com a pesquisa principal reli o trecho que segue abaixo. De todas as leituras recentes sempre, em certa medida, tenho notado um renovado convite a estar atento ao que realmente está ao nosso alcance e o que não é de nossa alçada, separando pacientemente uma coisa da outra para continuar o caminho nas correções. Convite sempre reiterado, principalmente, na linha de interpretação do que escrevemos aqui, neste texto e outros. Ora, cabendo sempre observar que a prática visada concernente à filosofia moral aqui, numa perspectiva "estoica" ou "kantiana", amparadas em outras referências clássicas na filosofia, preservar a motivação na busca individual pela Virtude e "cura das paixões".
Aliás, este tema "paixões" que tem sido frequente aqui nesta página, também aparece na obra citada abaixo "Antropologia de um ponto de vista pragmático" e vou escrever algo mais sobre isso, em breve. Inclusive, tentando relacionar as fontes consultadas com frequencia.
Eis, portanto, um trecho da leitura e estudos da manhã:
“Como por fim, para a sua própria
promoção, mesmo no conhecimento teórico, o uso total da faculdade de conhecer
necessita da razão, que dá a regra somente conforme a qual se pode promovê-la, pode-se
resumir o que a razão exige dela em três perguntas, que são colocadas segundo
suas três faculdades:
- o que eu quero? (pergunta o entendimento);
- de que se trata? (pergunta o juízo);
- o que resulta disso? (pergunta a
razão).
As mentes são muito diferentes em sua
capacidade de responder a essas três perguntas. - A primeira requer apenas uma mente clara para entender a si mesma, e
esse dom natural é, com alguma cultura, bastante comum, principalmente se se
chama a atenção para isso. - Responder acertadamente a segunda é muito mais raro, pois se oferecem muitas formas de
determinação do presente conceito e de resolução aparente do problema: qual é a
única exatamente adequada a ele (por exemplo, nos processos ou nos inícios de
certos planos de ação para o mesmo fim)? Para isso há um talento em escolher o
precisamente justo num certo caso (iudicium discretivum), talento bastante
desejável mas também muito raro.
[...]
Pela grande diferença no
modo como as mentes consideram exatamente os mesmos objetos e se consideram
mutuamente, pelo contato e pela união delas, tanto quanto por sua separação, a
natureza produz um espetáculo digno de ser visto no palco de observadores e
pensadores infinitamente distintos em sua espécie. Para a categoria dos pensadores
as máximas seguintes (já mencionadas acima como conduzindo à sabedoria) podem
se tornar mandamentos imutáveis:
- Pensar por si.
- Pôr-se (na comunicação com seres humanos) no lugar do outro.
- Pensar sempre de acordo consigo mesmo.
O primeiro princípio é negativo (nullius addictus iurare in verba Magistri*),
é o princípio do modo de pensar livre de
coação; o segundo é positivo, é o princípio do modo liberal de pensar, que se acomoda aos conceitos dos outros; o
terceiro, o principio do modo conseqüente
(coerente) de pensar; a antropologia pode dar exemplos de cada um deles, e mais
ainda de seus contrários. A mais importante revolução no interior do ser humano
é "a saída deste do estado de
menoridade em que se encontra por sua própria culpa". Enquanto até
aqui outros pensaram por ele, e ele simplesmente imitou ou precisou de
andadeiras, agora, vacilante ainda, ele ousa avançar com os
próprios pés no chão da experiência.”
* Não sou obrigado a jurar lealdade a nenhum mestre" (Horácio)
...
Sobre a obra "Antropologia de um ponto de vista pragmático":
“Este inverno, pela segunda vez, estou oferecendo um curso em antropologia, o qual pretendo transformar em uma disciplina acadêmica própria... Meu intuito é expor através dela as fontes de todas as ciências, ciências da moral, ou habilidade, do convívio social, dos métodos de educar e governar seres humanos, e assim, de tudo o que pertence ao prático... Incluo muitas observações da vida comum, de forma que, meus leitores terão muitas oportunidades para comparar sua própria experiência com as minhas considerações e assim, do início ao fim, achar as aulas divertidas e nunca áridas. Em meu tempo livre, estou trabalhando em um exercício preparatório para alunos a partir desse (na minha opinião) muito prazeroso estudo empírico (Beobachtungslehre) da habilidade, prudência, e até sabedoria que, junto com a geografia física e diferente de toda outra instrução, pode ser chamado de conhecimento do mundo.”
...
“Kant
(Carta a Marcus Herz, em 1773)
No caso de um livro que o próprio autor desejou que fosse “popular” talvez não seja supérfluo lembrar que a filosofia de Kant, por ser crítica, pretende estabelecer limites bem definidos para o conhecimento teórico, com a finalidade de assegurar à ciência a certeza e a objetividade que só podem ser alcançadas por via de regras e procedimentos formais sistematicamente construídos. E importante perceber corretamente o significa desses limites: não se trata de restringir os horizontes humanos nem de renunciar à experiência das possibilidades de conhecer e agir. Um iluminista que se dedica ao exame da razão só pode ter como meta a expansão de seu poder por via do conhecimento aprofundado da sua natureza. Se para ampliar aprimorar é preciso por vezes limitar e disciplinar, isso é algo que decorre de uma dialética interna à condição humana e de uma visão lúcida da finitude. Tenha-se presente, portanto, o caráter positivo dessa tarefa, inteiramente coerente com a perspectiva do progresso da humanidade no uso da razão.
O “ponto de vista pragmático” que Kant adota na sua Antropologia deriva desse humanismo progressista: a cultura e a educação do gênero humano só fazem sentido se servirem ao aprimoramento de cada homem, e este é o significado profundo da vinculação do saber antropológico ao mundo humano. Não se trata de utilitarismo e sim de uma concepção profunda de que o homem é, para si mesmo, finalidade e não instrumento. É isso que constitui a autenticidade de um conhecimento “pragmático”, que confere ao homem a prerrogativa de conhecer e dominar o mundo para servir aos fins humanos. Por isso o conhecimento das condições em que o homem elabora a sua própria existência não deve ser a mera descrição de mecanismos e habilidades inatos ou adquiridos, mas a avaliação do proveito que a espécie pode tirar daí para o aprimoramento de si mesma. A antropologia deve ser pragmática porque ela é inseparável do interesse do homem por si próprio e do compromisso que deve manter consigo mesmo.
É este o motivo pelo qual esse conhecimento não pode ser apenas teórico, isto é, não deve sujeitar-se aos limites da estrita objetividade, não porque desdenhe o rigor, mas porque o que está em jogo nesse caso justifica e mesmo exige um mais amplo descortino. A espécie de rigor que aí deve ser praticado conjuga-se com a ousadia de um desvelamento profundo na prática da observação. Hábitos contraídos e atitudes convencionadas devem ser superados quando o homem deseja verdadeiramente “estudar a si mesmo”. Dados de ordem científica devem ser justapostos às imagens construídas na literatura e nas artes, consideradas como fonte de apreensão dos caracteres humanos. Singularidades raciais e culturais devem ser comparadas, para ressaltar o sentido da diversidade. A antropologia, respeitando os limites da crítica do conhecimento, ao mesmo tempo se abre à totalidade.
É esta mescla de ambição e desprendimento ― algo que talvez esteja no cerne da atitude filosófica ― que faz da Antropologia de Kant uma lição para a nossa atualidade. (Franklin Leopoldo e Silva).
______.
Fonte: Amazon.com.br
______.
ARISTÓTELES. Metafísica; Ética a Nicômaco; Poética. (Tradução Vincenzo Coceo, Leonel Vallandro e Gerd Bornheim e Eudoro de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1984.
ARRIANO FLÁVIO. O Encheirídion de Epicteto. Edição Bilíngue. Tradução do texto grego e notas Aldo Dinucci; Alfredo Julien. Textos e notas de Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão. Universidade Federal de Sergipe, 2012)
BECK, Judith S. Terapia cognitiva: teoria e prática. Porto Alegre, RS, 2997.
BICALHO, Vanessa Brun. Ciência e sabedoria de vida na filosofia transcendental de Kant à luz do estoicismo. Tese de Doutorado (Campus de Toledo). Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste, 2021.
DINUCCI, A.; JULIEN, A. O Encheiridion de Epicteto. Coimbra: Imprensa de Coimbra, 2014.
______. Introdução ao Manual de Epicteto. 3. ed. São Cristóvão: EdiUFS, 2012.
GALENO. On the passions and errors of the soul. Translated by Paul W . Harkins with an introduction and interpretation by Walter Riese. Ohio State University Press, 1963.
GAZOLLA, Rachel. O ofício do filósofo estóico: o duplo registro do discurso da Stoa, Loyola, São Paulo, 1999.
HADOT, Pierre. The inner citadel: the meditations of Marcus Aurelius. London: Harvard University Press, 2001.
______. A filosofia como maneira de viver: entrevistas de Jeannie Carlier e Arnold I. Davidson. (Trad. Lara Christina de Malimpensa). São Paulo: É Realizações, 2016.
______. Exercícios espirituais e filosofia antiga. Trad. Flávio Fontenelle Loque, Loraine Oliveira. São Paulo: É Realizações, Coleção Filosofia Atual, 2014.
HANH, Thich Nhat. Meditação andando: guia para a paz interior. 21. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
_____. Silêncio: o poder da quietude em um mundo barulhento. Rio de Janeiro, RJ: Harper Collins, 2018.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. "Do ideal de Sumo Bem como um fundamento determinante do fim último da razão pura. Segunda seção". (A805, 806 - B833, 834). Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1994.
______. Crítica da razão prática. Trad. Monique Hulshof. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.
______. Sobre a Pedagogia. Tradução de Francisco Cock Fontenella. Piracicaba, SP: Editora Unimep, 1996.
______. Sobre a Pedagogia. Petrópolis, RJ, Editora Vozes, 2021.
______. Antropologia de um ponto de vista pragmático. Tradução Clélia Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006.
______. Resposta à pergunta: o que é “esclarecimento”?. In: Immanuel Kant textos seletos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985.
KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d. (dépôt légal 1985). (O Livro dos Espíritos. Trad. Guillon Ribeiro, ______. O livro dos Espíritos. 93. ed. - 1. reimpressão (edição histórica). Brasília, DF: Feb, 2013. (“As virtudes e os vícios” - Q. 893-912)
MARCO AURÉLIO. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
______. Meditações. São Paulo: Penguin/Companhia das Letras, 2023.
PLATÃO. Mênon. Trad. Maura Iglésias. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO; São Paulo: Ed. Loyola, 2001.
________. República de Platão. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2012.
________. Teeteto. Trad. Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.
________. Timeu. Trad. Maria José Figueredo. Lisboa: Instituto Piaget, 2003.
ROBERTSON, Donald. The Philosophy of Cognitive Behavioural Therapy (CBT): stoic philosophy as rational and Cognitive Psychotherapy. Londres :Karnac Books, 2010.
______. Pense como um imperador. Trad. Maya Guimarães. Porto Alegre: Citadel Editora, 2020.
______. How to think Like a roman emperor: the stoic philosophy of Marcus Aurelius. New York: St. Martin's Press, 2019.
SELLARS, J. The Art of Living: the stoics on the nature and function of philosophy. Burlington: Ashgate, 2003.KANT, Immanuel. Antropologia de um ponto de vista pragmático. Tradução Clélia
Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006.
Nenhum comentário:
Postar um comentário