quarta-feira, 24 de novembro de 2021

REFLEXÃO MATINAL CII: APARANDO ARESTAS, AINDA. A FILOSOFIA COMO MODO DE VIDA

(IMAGEM: "Pinterest")

Relia, há pouco: "Nas sombras do amanhã", de Johan Huizinga; pensando na "enfermidade espiritual de nosso tempo".

A isso somei (trecho abaixo) uma lembrança, de um post que um amigo prof. Humberto Schubert Coelho , publicou aqui em 07.03.2018, que à época chamei, por minha conta e risco, de "diagnóstico do tempo presente". Quase nada mudou, na verdade!

"Este é um momento histórico em que nada de bom parece prosperar. Se não houver baixaria, agressividade ou sarcasmo envolvido é quase certo que o discurso não será ouvido. Instintivamente, queremos ceder e reagir em um padrão semelhante ao que recebemos, mas nisso é que está todo o mérito da coisa: perseverar em ambiente hostil, contra todas as chances. Se o plantio não der em nada, ainda assim é um bom exercício."

Assim, reforçando a partir de trecho do texto acima, resta-nos, no entanto, que a mudança seja em nós; cada um de nós, e, continuarmos a: “[...] perseverar em ambiente hostil, contra todas as chances. Se o plantio não der em nada, ainda assim é um bom exercício."

Ou seja: valerá ainda a esperança, sempre, pela semente que foi lançada em solo fértil! 

Ademais, os temas são sempre recorrentes aqui, até que nos aplicando, alcancemos, em definitivo, de forma ampla o objetivo prático. Repito sempre as reflexões pessoais aqui, neste Blog, até que a grande tarefa se realize.

Ainda, no sentido da citação acima, acrescento para seguir refletindo "estoicamente", um trecho de texto extraído de um livro de J. Huizinga sobre Ensinamento ou ... mero “encenamento”?

"(...) Conhecimentos de todos os tipos, de uma quantidade e complexidade inéditas, são levados até as massas, mas não digeridos de modo a aplicarem-se à vida. O conhecimento não processado paralisa o discernimento e é um estorvo para a verdadeira sabedoria. E em lugar de ensinamento temos mero “encenamento”. O trocadilho é infame, mas infelizmente faz muito sentido." (HUIZINGA, )

E, ainda, acrescentando das minhas leituras sobre estoicismo, um notório princípio para prática de sua filosofia é um conjunto de três “exercícios práticos”. Os objetivos estóicos estão, sempre ajustados de forma a dar mais valor à ação do que às palavras. A maneira de agir de cada indivíduo que pretenda ser um estóico é priorizada devido ao fato de que verdadeiramente a ação mostra como uma pessoa realmente é. Daí a incessante busca, realizando exercícios práticos no cotidiano para alcançar a eustatheia (tranquilidade) e euthymia (crença em si). Aqui, só vou mostrar o primeiro exercício que é proposto pelos estóicos como ponto de partida para compreensão e prática de sua filosofia. Mas, são três exercícios fáceis e possíveis de serem realizados em qualquer tempo.

Bastante interessante, para mim, e um dos temas divulgados pelos estóicos: a reflexão matinal. O estóico Marco Aurélio, por exemplo, em suas Meditações como estóico, apresenta estes exercícios práticos que consistem sempre, como foi dito, em práticas simples. Ao acordar, agradeça por que você acordou e terá um novo dia com novas oportunidades pela frente. Segundo essa prática, o exercício se daria dessa forma:

No momento em que despertamos de uma noite sono, agradeçamos por ter acordado e por termos mais uma oportunidade num novo dia. Em seguida, tranquilamente sentemo-nos e pensemos no dia a se iniciar e como pretendemos vivê-lo, sem ter aqui a pretensão de estabelecer longas metas, planos.

Na verdade, o que importa aqui é pensar a maneira como nós enfrentaremos nossos vícios e como exercitaremos nossas virtudes. Algum conceito filosófico será exercitado e aplicado; alguma habilidade intelectual, um idioma, um tema de uma determinada área será posto em prática? Como faremos isso de forma efetiva? Como compor o nosso dia, que estamos iniciando, de forma a incluirmos esses exercícios?

Durante o dia, com certeza, inúmeras dificuldades aparecerão e, serão necessárias profundas reflexões sobre a forma como reagiremos a cada um.

Enfim, tomando o texto de Epictetus utilizado aqui para essa reflexão inicial, é fundamental, já praticando o exercício estóico, reconhecermos que não podemos controlar nada além dos nossos próprios pensamentos, nossas escolhas, vícios ou virtudes; nem tudo distante disso estará sob nosso controle. O que nos acontece à nossa volta serão eventos por nós percebidos que, no entanto, podemos optar por mantermos a calma e a tranquilidade diante deles, serenamente e sem nos distanciarmos da proposta inicial que pretendemos levar a cabo. Assim, portanto, reflitamos:

 “Em primeiro lugar, ao menos desde Sócrates, a opção por um modo de vida não se situa no fim do processo da atividade filosófica, como uma espécie de apêndice acessório, mas, bem ao contrário, na origem, em uma complexa interação entre a reação crítica e outras atitudes existenciais, a visão global de certa maneira de viver e de ver o mundo, e a própria decisão voluntária; e essa opção determina até certo ponto a doutrina e o modo de ensino dessa doutrina. O discurso filosófico tem sua origem, portanto, em uma escolha de vida e em uma opção existencial, e não o contrário. (...). Essa opção existencial implica, por seu turno, certa visão de mundo, e será tarefa do discurso filosófico revelar e justificar racionalmente tanto essa opção existencial como essa representação do mundo. (HADOT, 2014: 17 e 18)

A recomendação é excelente! Assim, pela vontade, podemos dedicar bom tempo exercitando o domínio das nossas opiniões, na “cura das paixões”; como li, recentemente, sobre a piedade Epicteteana. Uma tonalidade de alta confiança é percebida também nesse texto do imperador-filósofo:

"Toma conta de mim e atira-me para onde quiseres — porque, seja onde for, conservarei a minha consciência tranquila, isto é, satisfeita, contanto que eu proceda em conformidade com a minha natureza de homem. Valeria a pena que, por tão pouco, a minha alma se considerasse infeliz, se tornasse inferior a si mesma, se rebaixasse, se apaixonasse, se deixasse abater, se inquietasse? E que encontrarás na vida a que mereça tanto?"

"[...] Portanto, se coisa alguma sucede a cada ser senão o que é ordinário e natural, por que motivo hás de indignar-te? Pois a natureza nada te deu que fosse insuportável."

Aprendendo e aprofundando nos exercíci0os e tentavas. Aparando arestas, ainda.

Ora, enquanto faço mais uma pausa; preparo um cafezinho indispensável, reflito um pouco também sobre esta passagem do grande Plotino; da leitura do Enéadas. Sempre retomo esse trecho e tomo como minha esta reflexão. Diz muito sobre questões com que me envolvo! Estando por alguns dias sem acesso a redes sociais, sobrou-me um tempinho para colocar algumas atividades em ordem encerrando uma série de atividades hoje, para, em seguida retornar ao constante trabalho. 

A beleza, entendida aqui como fonte da harmonia dos seres na obra de Plotino, que a entendia como algo para além de produção meramente material; estaria em nós como atividade espiritual que impulsiona a sensibilidade, o pensamento e o desejo, sempre na direção do Bem Supremo. A realização plena da própria escultura pede um “fuga mundi”. E, nesse exercício o que se propõe não é um desprezo das coisas do mundo, não!     

 "É necessário ver a alma daqueles que realizam obras belas. Como se pode ver a beleza da alma boa? Volta-te a ti mesmo e olha se tu não vês, todavia, a beleza em ti, faze como o escultor de uma estátua, que deve ser bela; toma uma parte, esculpe-a e vai ensaiando até que tires linhas belas do mármore. Como aquele [escultor], tira o supérfluo, endireita o que é oblíquo, limpa o que está obscuro para torná-lo brilhante e não cesses de esculpir tua própria estátua, até que o resplendor divino da virtude se manifeste, até que vejas a temperança sentada sobre um trono sagrado. Tu és já isto? É isto que tu vês aí?

É isto que tu viste, um comércio puro, um trato puro, sem nenhum obstáculo à tua unificação, sem que nada estranho esteja mesclado interiormente a ti mesmo? És tu todo inteiro uma luz verdadeira, não uma luz de dimensão e de formas mensuráveis que pode diminuir ou aumentar indefinidamente em magnitude, senão uma luz que carece em absoluto de medida, porque é superior a toda medida e quantidade? Tu te vês neste estado?"

E, o dia só começou! 

Pois, que seja mais um dia de muito trabalho, de correções de percurso, mesmo com dificuldades ... "Premeditatio Malorum".  Em Paz!

______.

SUGESTÃO DE LEITURAS

XENOFONTE. Apologia de Sócrates. 5. ed. Trad. Líbero Rangel de Andrade. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (p. 164-165). (Col. Os Pensadores)

DINUCCI, A.; JULIEN, A. O Encheiridion de Epicteto. Coimbra: Imprensa de Coimbra, 2014.

EPICTETO. Entretiens. Livre I. Trad. Joseph Souilhé. Paris: Les Belles Lettres, 1956.

______. Epictetus Discourses. Book I. Trad. Dobbin. Oxford: Clarendon, 2008.

______. O Encheirídion de Epicteto. Trad. Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão: EdiUFS, 2012. (Edição Bilíngue)

______. Testemunhos e Fragmentos. Trad. Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão: EdiUFS, 2008.

EPICTETUS. The Discourses of Epictetus as reported by Arrian; Fragments; Encheiridion. Trad. Oldfather. Harvard: Loeb, 1928.

HADOT, Pierre. The inner citadel: the meditations of Marcus Aurelius. London: Harvard University Press, 2001. 

______. Exercícios espirituais e filosofia antiga. Trad. Flávio Fontenelle Loque, Loraine Oliveira. São Paulo: É Realizações, Coleção Filosofia Atual, 2014.

______. Elogio da Filosofia Antiga. Trad. Flávio Fontenelle Loque e Loraine Oliveira, São Paulo: Loyola, 2012.

______. O que é a filosofia antiga?. 6. ed. São Paulo: Loyola, 1998.

______. The Inner Citadel: The Meditations of Marcus Aurelius. Trad. Michael Case, Massachusetts: Harvard University Press, 1998. IRVINE, William B. A guide to the good life: the ancient art of Stoic joy. New York: Oxford University Press, 2009.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: um diagnóstico da enfermidade espiritual de nosso tempo . - Trad. Sérgio Marinho, Goiânia-GO: Editora Caminhos, 2017.

KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d. (dépôt légal 1985). (O Livro dos Espíritos. Trad. Guillon Ribeiro, ______. O livro dos Espíritos. 93. ed. - 1. reimpressão (edição histórica). Brasília, DF: Feb, 2013. ("As virtudes e os vícios": Q. 893-906).

KING, C. Musonius Rufus: Lectures and Sayings. CreateSpace Independent Publishing Platform, 2011.

LONG, Georg. Discourses of Epictetus, with Encheiridion and fragments. Londres: Georg Bell and sons, 1890.

LUTZ, C. Musonius Rufus, the Roman Socrates. Yale Classical Studies 10 3-147, 1947.

MARCO AURÉLIO. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Livro VIII: 45, 46)

SÉNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2014.

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