Ainda que se pretenda expulsá-la, ela retornará, forte e robusta; parece
alertar o próprio Kant:
“A razão humana, num determinado domínio dos seus conhecimentos, possui o singular destino de se ver atormentada por questões, que não pode evitar, pois lhe são impostas pela sua natureza, mas às quais também não pode dar resposta por ultrapassarem completamente as suas possibilidades. Não é por culpa sua que cai nessa perplexidade. Parte de princípios, cujo uso é inevitável no decorrer da experiência e, ao mesmo tempo, suficientemente garantido por esta. Ajudada por estes princípios eleva-se cada vez mais alto (como de resto lho consente a natureza) para condições mais remotas. Porém, logo se apercebe de que, desta maneira, a sua tarefa há-de ficar sempre inacabada, porque as questões nunca se esgotam; vê-se obrigada, por conseguinte, a refugiar-se em princípios, que ultrapassam todo o uso possível da experiência e, não obstante, estão ao abrigo de qualquer suspeita, pois o senso comum está de acordo com eles. Assim, a razão humana cai em obscuridades e contradições, que a autorizam a concluir dever ter-se apoiado em erros, ocultos algures, sem contudo os poder descobrir. Na verdade, os princípios de que se serve, uma vez que ultrapassam os limites de toda a experiência, já não reconhecem nesta qualquer pedra de toque. O teatro destas disputas infindáveis chama-se Metafísica[1]”.
Em “contraponto”:
Pela manhã, estudando
ainda as mesmas obras de sempre, ouvindo as obras de Beethoven, após ter relido
algumas páginas do livro "Da Alemanha", da Madame Stäel, decidi desviar um pouco até às ideias
de Leszek Kolakowski. Elas apontam para os problemas da religião e, por
isso, anoto aqui a leitura deste livro. Por incrível que pareça, escapou da enchente, estava na
estante desde 1990, quando tentei ler e não entendi nada. Agora, pelo tema “metafísica”
retornei a ele por acreditar que o que ele diz aqui, merece ser conhecido e vou
levar em consideração.
Ainda que alguém seja
decididamente ateu ou materialista, em algum momento terá de
enfrentar a questão de pensar sobre a necessidade de “acreditar em alguma coisa”
situada para além do mundo empírico.
Do que apreendi do texto,
é “um fato incontornável para quem pretenda entender os homens, não importando
o quanto o mundo contemporâneo tenha objetivamente tornado inviáveis a maioria
das percepções adotadas como fundamento de qualquer crença religiosa.”
Daí, o porque de ter
começado este texto com uma citação de Immanuel Kant, na Crítica da razão pura.
E, nisso o sentido de contraponto. Uma brevíssima refçexão pessoal!
Leszek Kolakowski
afirma que Deus, é a última pergunta num horizonte inatingível do pensamento.
Diz que em dois mil e quinhentos anos de filosofia, não pudemos, não
conseguimos, responder às principais questões propostas desde o início.
O livro que li ontem, “O
horror metafísico (1990)” parte daí apontando para um fracasso das buscas "metafísicas" da filosofia ocidental
em que nenhum filósofo apresentou respostas.
Para Leszek Kolakowski a busca por uma explicação metafísica do mundo é “tão irremovível da cultura quanto a negação de sua legitimidade”, mas alerta que pretender que a metafísica desista de seus empreendimentos, por outro lado, é um“pensamento esperançoso de empíricos obstinados”. A questão como pretendido aqui, ao citar Kant, log no início, é a de que mesmo que não tendo conseguido chegar às explicações buscadas não significa que é desnecessária. Quero pensar aqui que é uma necessidade humana indispensável e “que não pode ser satisfeita com nada menos que o Absoluto”.
Ainda que se questione a finalidade
prática ou científica, essa condição humana de procura, de buscas, não pode ser
reprimida. Todos querem, um sentido e disso resultaram as investigações
especulativa humanas desde o início da filosofia. No entanto, não encontrando sentidos,
respostas racionais, surge o “horror”.
Há no homem, portanto, a necessidade de sentido.
“O significado de dizermos que a existência do Ultimum (ou do Absoluto) é necessária não é somente que nós, humanos, somos incapazes de perceber sua falta dentro de nossas regras lógicas e usuais de pensamento, como não pode ser uma certeza a priori que nossa lógica é infalível. Podemos encontrar tais regras irresistivelmente ligadas, mas somos criaturas finitas e contingentes e nossa lógica não é menos contingente, e do fato de que não podemos dizer não a elas, não se deduz que a realidade final tenha que obedece-las também. O significado da necessidade da existência do Ultimum é que tal necessidade é dela própria e não nossa. Nossa lógica descobre a autocontradição na não-existência do Absoluto porque sua sua não-contradição está lá na verdade, e não vice-versa.”
Kolakowski ainda
diz que :“Não existe acesso a um absoluto epistemológico, e não há acesso
privilegiado ao Ser absoluto que pode resultar em conhecimento teórico
confiável (esta última restrição é necessária, pois nós não excluímos a
priori a realidade da experiência mística, que fornece a algumas pessoas
este acesso privilegiado; mas suas experiências não podem ser reinventadas numa
teoria). (…) Tornando operacional e inteligível uma de todas as linguagens
possíveis e por consequência tornando um ponto metafísico e epistemológico
confiável nunca começamos do começo. A escolha entre todas as linguagens
possíveis não é feita por Deus mas por civilizações.”
Para Kolakowski existem
muitas “meio-ciências”, tentando resolver as questões ainda em aberto
mas que não resistem a uma evidência.
Ele encerra o livro com
essas questões:
“E não seria uma suspeita
plausível de que se “ser” fosse algo sem sentido, e o universo vazio de
significado, nunca teríamos alcançado a habilidade de imaginar nem a habilidade
de pensar exatamente isto: que “ser” é de fato sem sentido e o universo vazio
de significado?” (p.125)
Enfim, as anotações aqui,
servirão de mote para avançar um pouco mais nessa reflexão sobre “metafísica”
que, claro, não se esgota. Fica a imagem de que as questões, por serem tão humanas,
sempre retornam e que fugir não é o melhor caminho.
______.
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