quarta-feira, 25 de maio de 2022

MEDITAÇÃO RETROSPECTIVA NOTURNA XLIX: AS "PAIXÕES" E AS "DOENÇAS DA ALMA"


(IMAGEM: "Pinterest")

Mais uma vez, revisitando velho e recorrente tema: “As paixões”. Tenho escrito aqui varios pequenos textos sobre autores que, em grande medida, tomam uma postura dos que acreditam que as paixões, são bem próximas do que se denomina doença e propõem a “cura das paixões”, outros propondo uma “moderação das paixões”, como os estoicos e outros citados abaixo. Mas, aqui não se trata mais de suprimi-las, nem mesmo de contê-las, moderando-as. “Para Hume, a contraparte da dessacralização do mundo é, justamente, aquele “culto das paixões” que ensina a conviver em sociedade e a usufruir do prazer a que a natureza humana está predisposta.”  

Geralmente, em filosofia, Aristóteles Platão podem ser vistos como os primeiros pensadores a tratarem detidamente o tema da "paixões", e seu papel na constituição do ser humano. Para eles, as paixões se apresentam como obstáculos na obtenção do verdadeiro conhecimento, Platão chega a equiparar paixões e doenças, por exemplo.  Na Modernidade, autores da área da Psicologia, tentam explicar os mecanismos para o funcionamento e consequências destas para conduta do ser humano. Na Filosofia, portanto, vários outros filósofos se dedicaram ao tema. Por exemplo: Cícero, Henri Bergson, René. Descartes, J.-J. Rousseau, Thomas Hobbes, Baruch Spinoza, Immanuel Kant, David Hume, Michel de Montaigne, Nicolau Maquiavel. Voltaire, Hume e outros.

No final do texto, acrescento uma nota de rodapé, referente ao que tenho refletido sobre o tema, há alguns anos; saindo do campo específico do texto, que é um esforço de continuidade nas reflexões sobre o tema na filosofia e na psicologia, conforme autores listados no parágrafo acima.

Na Ética a Nicômaco, capítulo 3 do livro 1, Aristóteles aponta elementos sobre como deve ser estudado o assunto das paixões. Ele mesmo, parece reconhecer os limites e a dificuldade em se traçar um estudo definitivo.

A quem pretenda estudar o assunto, Aristóteles sugere uma conduta que reconheça a dificuldade em se apresentar argumentos definitivos; conclusões apressadas. A razão (tem limites) não pode tudo, nesse assunto. As paixões, segundo Aristóteles, deixam, mesmo assim, abertas as possibilidades para nosso autogoverno. Como lemos em Lebrun (1987):

“O virtuoso, [ao invés de refrear as paixões], age corretamente, mas em harmonia com suas paixões, porque ele as dominou de uma vez por todas. Não só aprendeu a agir de modo conveniente, mas a sentir o páthos adequado” (LEBRUN, 1987, p. 20).

Raciocínio bem próximo, tenho estudado nas obras de pensadores estoicos como as de Epicteto, Musônio Rufo, Sêneca e Marco Aurélio.

Ou seja: na obra de Aristóteles, a discussão sobre as paixões é fundamental na formação de indivíduo virtuoso. Para ele, o homem é responsável pela autoeducação das tendências naturais; o mau uso ou usá-las para o bem e virtude, é responsabilidade de cada um. Alcançar a virtude, portanto, seria o resultado do exercício constante da razão pelo homem. Ainda nos diz, Lebrun:

“Devemos aprender a viver em conformidade com o lógos, mas sem esquecer que as paixões continuam sendo a matéria de nossa conduta – e que só a propósito de seres passionais se pode falar em conduta razoável. Paixão e razão são inseparáveis, assim como a matéria é inseparável da obra e o mármore da estátua (LEBRUN, 1987, p. 22).”

Resta-nos assim, em relação à paixões, enfrentarmos a questão da autoeducação e dominá-las. E, acima de tudo, bem conduzí-las![1]

"[5a] As coisas não inquietam os homens, mas as opiniões sobre as coisas." (EPICTETO, 2012)

Hoje, 25 de maio, acabei der ler um outro livro de David Hume sobre as paixões.

E, segundo o tradutor: “O Sr. Hume possui um sentimento delicado, um pensamento de feitio original, uma linguagem perspícua, não raro elegante, qualidades que não poderiam deixar de recomendar seus escritos a todo leitor de bom gosto. É pena que um gênio como esse empregue as suas habilidades como frequentemente o faz em seus ataques à religião de seu país. Ele não age como um inimigo franco e leal, mas tenta enfraquecer a autoridade dela por meio de sugestões oblíquas e insinuações ardilosas. Desse ponto de vista, sua obra não merece muita estima, se é que merece alguma; e poucos leitores dotados de discernimento o louvarão com epítetos de acuidade ou elegância, se considerarem que ele emprega essas qualidades para preencher a mente com as incômodas flutuações do ceticismo e com uma infidelidade sombria. William Rose, 1757 As paixões nunca foram bem vistas pelos filósofos. De Platão e Aristóteles a Descartes e Hobbes, elas são o contraponto da razão. Imiscuindo-se na imaginação, atrapalham as deliberações razoáveis e perturbam a conduta. Incontornáveis, porque enraizadas no corpo, devem ser contidas. Em manuais dedicados à conduta do entendimento, Locke e Espinosa tentam proteger as ideias retas e sãs contra a ação insidiosa desse inimigo formidável. Nessa história de desconfiança, Hume é a exceção. Adepto de uma filosofia experimental pautada por um rigoroso método de análise da experiência moral, ele se distancia dos filósofos e aproxima-se dos moralistas. É um admirador dos preceitos clássicos do Grande Século francês, época em que a boa sociedade se dedicava ao que Auerbach chamou de “culto das paixões”. Leitor de Racine, Hume descobre nas próprias paixões o antídoto para os males que elas causam. Doravante, não se trata mais de suprimi-las, nem mesmo de contê-las. Apropriando-se da sua força magnífica, a arte, e em especial a arte de escrever, elabora uma pedagogia da sensibilidade. A partir desse preceito, Hume tece considerações críticas sobre a oratória, a tragédia, a poesia e a história, ocupando-se delas em seus ensaios morais e literários (publicados pela Iluminuras no volume A arte de escrever ensaio). Já neste outro volume, o leitor encontrará, além da Dissertação sobre as paixões, que retoma o livro II do Tratado da natureza humana, o opúsculo História natural da religião. Esse texto veemente encontra as paixões na origem primeira da religião. Mas que não se espere desse cético convicto uma defesa da “religião natural”, baseada na ciência e na razão. A implacável descrição da gênese do fenômeno religioso termina com um elogio da descrença. Mas não do niilismo. Para Hume, a contraparte da dessacralização do mundo é, justamente, aquele “culto das paixões” que ensina a conviver em sociedade e a usufruir do prazer a que a natureza humana está predisposta.” (Pedro Paulo Pimenta)

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______.

[1] Ainda, só para reflexão pessoal: li, na obra do século XIX, do autor francês Allan Kardec (2013), o seguinte:

“907. Será intrinsecamente mau o princípio originário das paixões, embora esteja na Natureza?

“Não; a paixão está no excesso de que se acresceu a vontade, visto que o princípio que lhe dá origem foi posto no homem para o bem, tanto que as paixões podem levá-lo à realização de grandes coisas. O abuso que delas se faz é que causa o mal.”

908. Como se poderá determinar o limite onde as paixões deixam de ser boas para se tornarem más?

“As paixões são como um corcel, que só tem utilidade quando governado, e que se torna perigoso quando passa a governar. Uma paixão se torna perigosa a partir do momento em que deixais de poder governá-la, e que dá em resultado um prejuízo qualquer para vós mesmos ou para outrem.”

As paixões são alavancas que decuplicam as forças do homem e o auxiliam na execução dos desígnios da Providência. Mas se, em vez de as dirigir, deixa que elas o dirijam, cai o homem nos excessos e a própria força que, manejada pelas suas mãos, poderia produzir o bem, contra ele se volta e o esmaga.


Todas as paixões têm seu princípio num sentimento ou necessidade natural. O princípio das paixões não é, assim, um mal, pois que assenta numa das condições providenciais da nossa existência. A paixão propriamente dita é a exageração de uma necessidade ou de um sentimento. Está no excesso e não na causa, e este excesso se torna um mal quando tem como consequência um mal qualquer.

Toda paixão que aproxima o homem da natureza animal afasta-o da natureza espiritual.

Todo sentimento que eleva o homem acima da natureza animal denota predominância do espírito sobre a matéria e o aproxima da perfeição.

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