(em andamento)
“As paixões são como um corcel, que só tem utilidade quando governado, e que se torna perigoso quando passa a governar. Uma paixão se torna perigosa a partir do momento em que deixais de poder governá-la, e que dá em resultado um prejuízo qualquer para vós mesmos ou para outrem.” (LE, Q. 908)
Tem sido comum e bastante frequente, nas leituras de autores escolhidos para um determinado enfoque, encontrar nestes, reflexões sobre a "natureza humana". Na obra dos Estoicos entre outros grandes filósofos, por exemplo, o tema é fundamental. É o que foi a Reflexão matinal de hoje.
Começo com Musonius Rufus, que teria dito:
“Todos nós fomos feitos pela natureza, de forma que possamos viver livre de erros e de forma nobre, não que um possa e outro não possa, todos podemos.”
Evidente que, como andam as coisas hoje em dia, não é difícil encontrar, inúmeros opositores ensandecidos, desequilibrados, a insistirem na negação de que se possa nascer com inclinação para as virtudes. Preferem defender que possa haver no homem uma natureza corrupta em si mesma do que admitir que, na verdade, haveria a possibilidade de que uma certa “natureza humana” pudesse ter se corrompido; que se tenha tomado direções equivocadas e desviado da meta, a qual como diz Musonius Rufus: “todos podemos” chegar. A filosofia seria uma ferramenta para retorno à nossa verdadeira “natureza humana”. Este é o foco aqui!
O que se aprenderá com a filosofia, no modo defendido aqui é que ela pode sim, revelar uma "essência" em nós. O erro, o equívoco, será uma constante mesmo na vida de quem persista em agir corretamente, mas daí não se poder ratificar que há somente uma natureza corrompida; pelo contrário, o que haveria é que, no exercício cotidiano a ocorrência dos erros e dos desvios de rota sempre se apresentam. Cabe-nos a “escolha”!
E, é isso, que exige de nós, sempre, uma profunda e repetida reflexão, por parecer apontar na direção de uma solução distante e quase impossível. Os Estoicos defendem que qualquer um pode reverter um mau comportamento, reparar os erros e se reorientar na direção no caminho das Virtudes dedicando-se ao estudo regular, constante e disciplinado da filosofia. Para eles a prática das virtudes começa por aí e prossegue-se aprendendo a separar o que é bom (virtude) do que é mau (vícios).
A meta, portanto: aprendermos a admitir que há coisas às quais podemos impor nosso controle e há coisas que fogem da nossa alçada e é pífio o poder de termos controle sobre elas. O que a proposta dos Estóicos sugere é que se exercite as ações em consonância com as que fogem ao nosso domínio, que estariam, talvez, no domínio das leis naturais. A Filosofia é tomada, portanto, como prática diária na correção dos erros e na compreensão e aceitação das próprias limitações.
Ademais, tendo estudado com frequência a obra dos estoicos, com profundo interesse no estudo sobre as paixões, recentemente, a partir mesmo do próprio Descartes, encontrei relações bem interessantes a serem pensadas e acrescentei um artigo do prof. S.S. Chibeni que corrobora em grande medida as minhas reflexões.
Portanto, é nesse sentido acrescento um trecho de artigo deste professor sobre o que diz Descartes em seu “Paixões da alma” porque neste texto ele apresenta o tema numa nova perspectiva, tomando como ponto de partida uma análise da “natureza das paixões”; desenvolve a ideia de “controle das paixões” muito presente no texto de Descartes enquanto os estoicos por exemplo falavam em “cura das paixões”.
Ou seja, analisa “[...] as paixões dos pontos de vista fisiológico, psicológico e anímico. Utilizando [...] as noções de paixões boas e más, de efeitos bons e maus, de malefícios e benefícios sem questionar a distinção do bem e do mal. É evidente que para aplicarmo-nos ao controle de nossas paixões é preciso antes saber distinguir o bem do mal. Isso cabe à área da filosofia denominada moral ou ética. Descartes e a maior parte dos grandes filósofos atribuíram grande importância ao estudo da moral, procurando determinar o critério do bem e do mal e os fundamentos nos quais se apóie. Segundo ele não “[...] podemos adentrar esse assunto aqui. E se atém “[...] unicamente a alguns aspectos das relações entre as paixões e a moral, tratados em As Paixões da Alma.” sugerindo para isso a leitura atenta nesse ponto os parágrafos 47 - 49 e 52; os parágrafos 137-138 e ainda
No fina de seu artigo, na seção “Na direção do infinito” ao fazer uma proposta para essa busca, diz ele:
“Não poderíamos concluir este pequeno trabalho sem mencionar que no final da terceira parte de seu livro Descartes apresenta brevemente um outro aspecto das percepções da alma, complementar ao das paixões, tais quais as entendia. Vimos que para ele estas últimas tinham sempre uma "contraparte" orgânica.
Sugerimos, por nossa vez, que esse aspecto talvez não seja central nas paixões, que parecem antes ser inerentes à própria alma.
De qualquer modo, dentro do referencial que elaborou, Descartes também notou que há percepções da alma que radicam nela própria, ou, em suas palavras, "emoções interiores que são excitadas na alma apenas pela própria alma" (§ 147; grifamos). Um dos exemplos que dá é a "alegria intelectual" que sentimos quando lemos um romance ou assistimos a uma peça teatral em que as situações excitam em nós diversas paixões, como a alegria, a tristeza, o ódio, o amor, trazendo-nos todas uma espécie de prazer de ordem superior.
Vejamos estas belas passagens do parágrafo 148, em que Descartes desenvolve o tema:
Ora, visto que essas emoções interiores nos tocam mais de perto e têm, por conseguinte, muito mais poder sobre nós do que as paixões que se encontram com elas, e das quais diferem, é certo que, contanto que a alma tenha sempre do que se contentar em seu íntimo, todas as perturbações que vêm de outras partes não dispõem de poder algum para prejudicá-la. Servem, antes, para lhe aumentar a alegria, pelo fato de, vendo que não pode ser por elas ofendido, conhecer com isso a sua própria perfeição. E, para que a nossa alma tenha assim do que estar contente, precisa apenas seguir estritamente a virtude. Pois quem quer que haja vivido de tal maneira que sua consciência não possa censurá-lo de alguma vez ter deixado de fazer todas as coisas que julgou serem as melhores (que é o que chamo aqui seguir a virtude), recebe daí uma satisfação tão poderosa para torná-lo feliz que os mais violentos esforços da paixão nunca têm poder suficiente para perturbar a tranqüilidade de sua alma.
Descartes aponta, assim, uma espécie de sublimação dos sentimentos, na direção da alegria perene e sem mácula que resulta tão-somente da prática da virtude. Essa a alegria que viveremos um dia, quando, pelos nossos esforços, lograrmos alcançar a excelsa condição de Espíritos puros.”
Bastante oportuno sem dúvidas, para as intenções de estudos por aqui, encontrar estas relações entre grandes filósofos e aproveitar seus escritos para a “filosofia prática” (Chibeni, 1997)
Link para o artigo: https://www.geeu.net.br/artigos/paixoes.pdf
(Só os grifos e destaques são meus)
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