domingo, 21 de novembro de 2021

REFLEXÃO MATINAL CI: DA ANTROPLOGIA KANTIANA E OUTRAS POSSÍVEIS RELAÇÕES BUSCADAS

 

 

Foi assim, após a “meditação da manhã”, estudando e escrevendo um capítulo de livro e revisando outros textos para submissão, após ter apresentado um pequeno trabalho num evento sobre Estoicismo que, aproveitando a pausa com a pesquisa principal reli o trecho que segue abaixo. De todas as leituras recentes sempre, em certa medida, tenho notado um renovado convite a estar atento ao que realmente está ao nosso alcance e o que não é de nossa alçada, separando pacientemente uma coisa da outra para continuar o caminho nas correções. Convite sempre reiterado, principalmente, na linha de interpretação do que escrevemos aqui, neste texto e outros. Ora, cabendo sempre observar que a prática visada concernente à filosofia moral aqui, numa perspectiva "estoica" ou "kantiana", amparadas em outras referências clássicas na filosofia, preservar a motivação na busca individual pela Virtude e "cura das paixões". 

Aliás, este tema "paixões" que tem sido frequente aqui nesta página, também aparece na obra citada abaixo "Antropologia de um ponto de vista pragmático" e vou escrever algo mais sobre isso, em breve. Inclusive, tentando relacionar as fontes consultadas com frequencia.

Eis, portanto, um trecho da leitura e estudos da manhã: 

“Como por fim, para a sua própria promoção, mesmo no conhecimento teórico, o uso total da faculdade de conhecer necessita da razão, que dá a regra somente conforme a qual se pode promovê-la, pode-se resumir o que a razão exige dela em três perguntas, que são colocadas segundo suas três faculdades:

  • o que eu quero? (pergunta o entendimento);
  • de que se trata? (pergunta o juízo);
  • o que resulta disso? (pergunta a razão).

As mentes são muito diferentes em sua capacidade de responder a essas três perguntas. - A primeira requer apenas uma mente clara para entender a si mesma, e esse dom natural é, com alguma cultura, bastante comum, principalmente se se chama a atenção para isso. - Responder acertadamente a segunda é muito mais raro, pois se oferecem muitas formas de determinação do presente conceito e de resolução aparente do problema: qual é a única exatamente adequada a ele (por exemplo, nos processos ou nos inícios de certos planos de ação para o mesmo fim)? Para isso há um talento em escolher o precisamente justo num certo caso (iudicium discretivum), talento bastante desejável mas também muito raro.

[...]

Pela grande diferença no modo como as mentes consideram exatamente os mesmos objetos e se consideram mutuamente, pelo contato e pela união delas, tanto quanto por sua separação, a natureza produz um espetáculo digno de ser visto no palco de observadores e pensadores infinitamente distintos em sua espécie. Para a categoria dos pensadores as máximas seguintes (já mencionadas acima como conduzindo à sabedoria) podem se tornar mandamentos imutáveis:

  1. Pensar por si.
  2. Pôr-se (na comunicação com seres humanos) no lugar do outro.
  3. Pensar sempre de acordo consigo mesmo.

O primeiro princípio é negativo (nullius addictus iurare in verba Magistri*), é o princípio do modo de pensar livre de coação; o segundo é positivo, é o princípio do modo liberal de pensar, que se acomoda aos conceitos dos outros; o terceiro, o principio do modo conseqüente (coerente) de pensar; a antropologia pode dar exemplos de cada um deles, e mais ainda de seus contrários. A mais importante revolução no interior do ser humano é "a saída deste do estado de menoridade em que se encontra por sua própria culpa". Enquanto até aqui outros pensaram por ele, e ele simplesmente imitou ou precisou de andadeiras, agora, vacilante ainda, ele ousa avançar com os próprios pés no chão da experiência.”

* Não sou obrigado a jurar lealdade a nenhum mestre" (Horácio)

...

Sobre a obra "Antropologia de um ponto de vista pragmático"

Este inverno, pela segunda vez, estou oferecendo um curso em antropologia, o qual pretendo transformar em uma disciplina acadêmica própria... Meu intuito é expor através dela as fontes de todas as ciências, ciências da moral, ou habilidade, do convívio social, dos métodos de educar e governar seres humanos, e assim, de tudo o que pertence ao prático... Incluo muitas observações da vida comum, de forma que, meus leitores terão muitas oportunidades para comparar sua própria experiência com as minhas considerações e assim, do início ao fim, achar as aulas divertidas e nunca áridas. Em meu tempo livre, estou trabalhando em um exercício preparatório para alunos a partir desse (na minha opinião) muito prazeroso estudo empírico (Beobachtungslehre) da habilidade, prudência, e até sabedoria que, junto com a geografia física e diferente de toda outra instrução, pode ser chamado de conhecimento do mundo.

...

Kant

(Carta a Marcus Herz, em 1773)

No caso de um livro que o próprio autor desejou que fosse “popular” talvez não seja supérfluo lembrar que a filosofia de Kant, por ser crítica, pretende estabelecer limites bem definidos para o conhecimento teórico, com a finalidade de assegurar à ciência a certeza e a objetividade que só podem ser alcançadas por via de regras e procedimentos formais sistematicamente construídos. E importante perceber corretamente o significa desses limites: não se trata de restringir os horizontes humanos nem de renunciar à experiência das possibilidades de conhecer e agir. Um iluminista que se dedica ao exame da razão só pode ter como meta a expansão de seu poder por via do conhecimento aprofundado da sua natureza. Se para ampliar aprimorar é preciso por vezes limitar e disciplinar, isso é algo que decorre de uma dialética interna à condição humana e de uma visão lúcida da finitude. Tenha-se presente, portanto, o caráter positivo dessa tarefa, inteiramente coerente com a perspectiva do progresso da humanidade no uso da razão.

O “ponto de vista pragmático” que Kant adota na sua Antropologia deriva desse humanismo progressista: a cultura e a educação do gênero humano só fazem sentido se servirem ao aprimoramento de cada homem, e este é o significado profundo da vinculação do saber antropológico ao mundo humano. Não se trata de utilitarismo e sim de uma concepção profunda de que o homem é, para si mesmo, finalidade e não instrumento. É isso que constitui a autenticidade de um conhecimento “pragmático”, que confere ao homem a prerrogativa de conhecer e dominar o mundo para servir aos fins humanos. Por isso o conhecimento das condições em que o homem elabora a sua própria existência não deve ser a mera descrição de mecanismos e habilidades inatos ou adquiridos, mas a avaliação do proveito que a espécie pode tirar daí para o aprimoramento de si mesma. A antropologia deve ser pragmática porque ela é inseparável do interesse do homem por si próprio e do compromisso que deve manter consigo mesmo.

É este o motivo pelo qual esse conhecimento não pode ser apenas teórico, isto é, não deve sujeitar-se aos limites da estrita objetividade, não porque desdenhe o rigor, mas porque o que está em jogo nesse caso justifica e mesmo exige um mais amplo descortino. A espécie de rigor que aí deve ser praticado conjuga-se com a ousadia de um desvelamento profundo na prática da observação. Hábitos contraídos e atitudes convencionadas devem ser superados quando o homem deseja verdadeiramente “estudar a si mesmo”. Dados de ordem científica devem ser justapostos às imagens construídas na literatura e nas artes, consideradas como fonte de apreensão dos caracteres humanos. Singularidades raciais e culturais devem ser comparadas, para ressaltar o sentido da diversidade. A antropologia, respeitando os limites da crítica do conhecimento, ao mesmo tempo se abre à totalidade.

É esta mescla de ambição e desprendimento ― algo que talvez esteja no cerne da atitude filosófica ― que faz da Antropologia de Kant uma lição para a nossa atualidade. (Franklin Leopoldo e Silva).

______.

Fonte: Amazon.com.br

______.

ARISTÓTELES. MetafísicaÉtica a Nicômaco; Poética. (Tradução Vincenzo Coceo, Leonel Vallandro e Gerd Bornheim e Eudoro de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1984.

ARRIANO FLÁVIO. O Encheirídion de Epicteto. Edição Bilíngue. Tradução do texto grego e notas Aldo Dinucci; Alfredo Julien. Textos e notas de Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão. Universidade Federal de Sergipe, 2012)

BECK, Judith S. Terapia cognitiva: teoria e prática. Porto Alegre, RS, 2997.

BICALHO, Vanessa Brun. Ciência e sabedoria de vida na filosofia transcendental de Kant à luz do estoicismo. Tese de Doutorado (Campus de Toledo). Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste, 2021.

DINUCCI, A.; JULIEN, A. O Encheiridion de Epicteto. Coimbra: Imprensa de Coimbra, 2014.

______. Introdução ao Manual de Epicteto. 3. ed. São Cristóvão: EdiUFS, 2012.

GALENO. On the passions and errors of the soul. Translated by Paul W . Harkins with an introduction and interpretation by Walter Riese. Ohio State University Press, 1963.

GAZOLLA, Rachel.  O ofício do filósofo estóico: o duplo registro do discurso da Stoa, Loyola, São Paulo, 1999.

HADOT, Pierre. The inner citadel: the meditations of Marcus Aurelius. London: Harvard University Press, 2001.

______. A filosofia como maneira de viver: entrevistas de Jeannie Carlier e Arnold I. Davidson. (Trad. Lara Christina de Malimpensa). São Paulo: É Realizações, 2016.

______. Exercícios espirituais e filosofia antiga. Trad. Flávio Fontenelle Loque, Loraine Oliveira. São Paulo: É Realizações, Coleção Filosofia Atual, 2014.

HANH, Thich Nhat. Meditação andando: guia para a paz interior. 21. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

_____. Silêncio: o poder da quietude em um mundo barulhento. Rio de Janeiro, RJ: Harper Collins, 2018.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. "Do ideal de Sumo Bem como um fundamento determinante do fim último da razão puraSegunda seção". (A805, 806 - B833, 834). Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1994.

______. Crítica da razão prática. Trad. Monique Hulshof. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.

______. Sobre a Pedagogia. Tradução de Francisco Cock Fontenella. Piracicaba, SP: Editora Unimep, 1996.

______. Sobre a Pedagogia. Petrópolis, RJ, Editora Vozes, 2021.

______. Antropologia de um ponto de vista pragmático. Tradução Clélia Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006.

______. Cursos de Antropologia: a faculdade de conhecer (Excertos). Seleção, tradução e notas de Márcio Suzuki. São Paulo: Editora Clandestina, 2017.

______. Resposta à pergunta: o que é “esclarecimento”?. In: Immanuel Kant textos seletos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985.

KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d. (dépôt légal 1985). (O Livro dos Espíritos. Trad. Guillon Ribeiro, ______. O livro dos Espíritos. 93. ed. - 1. reimpressão (edição histórica). Brasília, DF: Feb, 2013. (“As virtudes e os vícios” - Q. 893-912)

MARCO AURÉLIO. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

______. Meditações. São Paulo: Penguin/Companhia das Letras, 2023.

PLATÃO. Mênon. Trad. Maura Iglésias. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO; São Paulo: Ed. Loyola, 2001.

________. República de Platão. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2012.

________. Teeteto. Trad. Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

________. Timeu. Trad. Maria José Figueredo. Lisboa: Instituto Piaget, 2003.

ROBERTSON, Donald. The Philosophy of Cognitive Behavioural Therapy (CBT): stoic philosophy as rational and Cognitive Psychotherapy. Londres  :Karnac Books, 2010.

______. Pense como um imperador. Trad. Maya Guimarães. Porto Alegre: Citadel Editora, 2020.

______. How to think Like a roman emperor: the stoic philosophy of Marcus Aurelius. New York: St. Martin's Press, 2019.

SELLARS, J. The Art of Living: the stoics on the nature and function of philosophy. Burlington: Ashgate, 2003.KANT, Immanuel. Antropologia de um ponto de vista pragmático. Tradução Clélia Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006.

 

sábado, 20 de novembro de 2021

REFLEXÃO MATINAL C: O QUE É O HOMEM E O QUE LHE CABE REALIZAR?

 

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“É entusiasmante pensar que a natureza humana será sempre melhor desenvolvida e aprimorada pela educação, e que é possível chegar a dar àquela forma, a qual em verdade convém à humanidade. Isso abre perspectiva para uma futura felicidade da espécie humana.” (KANT, 1999. p. 16-17)

Pausa na oficina, depois de ter estudado "Do ideal de sumo bem como um fundamento determinante do fim último da razão pura'segunda seção da Crítica da Razão pura'", aproveito para a reflexão matinal. 

Ora, um dia desses, outra vez andei pensando nessa questão que hoje, bem cedinho, retornei a ela como já faço sempre aqui, nas páginas deste blog. Assim, portanto, dediquei o início da manhã a re-pensar sobre a “progressão do Espírito" (cf. LE 100-127) acrescido de serenidade:

"Se, pois, para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo e tudo o mais é desejado no interesse desse fim; e se é verdade que nem toda coisa desejamos com vistas em outra (porque, então, o processo se repetiria ao infinito, e inútil e vão seria o nosso desejar), evidentemente tal fim será o Bem, ou antes, o Sumo Bem." (ARISTÓTELES. 1984).

...

Sumo Bem como “fim” exige que nosso esforço seja no sentido de não desperdiçarmos o já alcançado. Que o já conquistado seja preservado num abraço resoluto na busca das virtudes.

De olho no conjunto, faz-se necessário que nos sustentemos em fundamentos sólidos, perenes, nos avanços de si, por si, para si. É, portanto, nosso dever a impormo-nos o tornar mais nobre o que há muito é desejado e buscado. Já existe, em certa medida; ainda fragmentado, disperso e necessita unidade.

Ou seja: é melhor abandonar o que não somos nós, o que não é tarefa nossa. Neste sentido, a recomendação de Epicteto:

[48.b2] ὄρεξιν ἅπασαν ἦρκεν ἐξ ἑαυτοῦ· τὴν δ' ἔκκλισιν εἰς μόνα τὰ παρὰ φύσιν τῶν ἐφ' ἡμῖν μετατέθεικεν. ὁρμῇ πρὸς ἅπαντα ἀνειμένῃ χρῆται. ἂν ἠλίθιος ἢ ἀμαθὴς δοκῇ, οὐ πεφρόντικεν. ἐνί τε λόγῳ, ὡς ἐχθρὸν ἑαυτὸν παραφυλάσσει καὶ ἐπίβουλον.

[48.b2] Retira de si todo o desejo e transfere a repulsa unicamente para as coisas que, entre as que são encargos nossos, são contrárias à natureza. Para tudo, faz uso do impulso amenizado. Se parecer insensato ou ignorante, não se importa. Em suma: guarda-se atentamente como um inimigo traiçoeiro”.

E, Kant diz em: "Do ideal de sumo bem como um fundamento determinante do fim último da razão pura", que me motivou a escrever esse texto breve para reflexão pessoal.

"Todo o interesse da minha razão (tanto especulativa como prática) concentra-se nas seguintes três interrogações:

Que posso saber?

Que devo fazer?

Que me é permitido esperar?

[...]

primeira questão é simplesmente especulativa. Esgotamos (e disso me ufano) todas as respostas possíveis e encontramos enfim aquela com a qual a razão é obrigada a contentar-se e, mesmo quando não se ocupa do interesse prático, também tem motivo para estar satisfeita; mas ficamos tão distanciados dos dois grandes fins para onde está orientado todo o esforço da razão pura, como se por comodidade tivéssemos renunciado desde o princípio a este trabalho. Se portanto, se trata do saber, é pelo menos seguro e está bem estabelecido que, em relação a estas duas perguntas, nunca poderemos saber algo.

segunda interrogação é simplesmente prática. É certo que, como tal, pode pertencer à razão pura, mas não é transcendental, é moral, e, por conseguinte, não pode em si mesma fazer parte da nossa crítica.

terceira interrogação: Se faço o que devo fazer, que me é permitido esperar? é ao mesmo tempo prática e teórica, de tal modo que a ordem prática apenas serve de fio condutor para a resposta à questão teórica e, quando esta se eleva, para a resposta à questão especulativa. Com efeito, toda a esperança tende para a felicidade e está para a ordem prática e para a lei moral, precisamente da mesma forma que o saber e a lei natural estão para o conhecimento teórico I das coisas. A esperança leva, por fim, à conclusão que alguma coisa é (que determina o fim último possível), porque alguma coisa deve acontecer; o saber, à conclusão que alguma coisa é (que age como causa suprema) porque alguma coisa acontece.

A felicidade é a satisfação de todas as nossas inclinações (tanto extensive, quanto à sua multiplicidade, como intensive, quanto ao grau e também protensive, quanto à duração). Designo por lei pragmática (regra de prudência) a lei prática que tem por motivo a felicidade; e por moral (ou lei dos costumes), se existe alguma, a lei que não tem outro móbil que não seja indicar-nos como podemos tornar-nos dignos da felicidade. A primeira aconselha o que se deve fazer se queremos participar na felicidade; a segunda ordena a maneira como nos devemos comportar para unicamente nos tornarmos dignos da felicidade. A primeira funda-se em princípios empíricos; pois, a não ser pela experiência, não posso saber quais são as inclinações que querem ser satisfeitas, nem quais são as causas naturais que podem operar essa satisfação. A segunda faz abstração de inclinações e meios naturais de as satisfazer e considera apenas a liberdade de um ser racional em geral e as condições necessárias pelas quais somente essa liberdade concorda, segundo princípios, com a distribuição da felicidade e, por conseqüência, pode pelo menos repousar em simples idéias da razão pura e ser conhecida a priori.

Admito que há, realmente, leis morais puras que determinam completamente a priori o fazer e o não fazer (sem ter em conta os móbiles empíricos, isto é, a felicidade), ou seja, o uso da liberdade de um ser racional em geral e que estas leis comandam de uma maneira absoluta (não meramente hipotética, com o pressuposto de outros fins empíricos) e portanto são, a todos os títulos, absolutas. Posso pressupor esta proposição recorrendo não só às provas dos moralistas mais esclarecidos mas ao juízo moral de todo o homem, quando quer pensar claramente semelhante lei"

Aferindo resultados práticos

“Aquele que progride é quem aprendeu dos filósofos que o desejo é pelas coisas boas e que a repulsa é pelas coisas más; é o que aprendeu também que a serenidade e a privação de sofrimento (tó euroyn kaí apathés) não advêm de outro modo ao homem senão assegurando o desejo e evitando o repulsa [...] Como, portanto, concordamos ser a virtude algo tal e buscamos e exibimos progresso em outras coisas? Qual a obra da virtude? A serenidade (euróia)." (Epicteto. D. I, IV.)

A meta: com essas máximas tomadas como maneira de caminhar em busca das virtudes, o propósito é alcançar a eudaimonia (embora Kant critique a concepção de eudaimonia), chegar euroia [εὐροίας]: serenidade, com a recomendação de Epicteto, por exemplo: 

  1. apátheia (ἀπάθεια): ausência de paixões e,
  2. ataraxía (ἀταραξία):imperturbabilidade da alma.

Neste sentido, um modo de levar em frente o projeto tem sido acrescentar a leitura que Pierre Hadot fez da filosofia estoica. Ora, o que ele denominou “exercícios espirituais” tem possibilitado a reflexão e uma “metodologia” para uma verdadeira transformação do ‘si mesmo’ que muitos estoicos e o próprio Epicteto viam como “conversão” por ser uma ética profundamente vinculada a proairesis (προαίρεσις): escolhas: 

É nesse sentido, que prossigo esse estudo em meio ao restante: aperfeiçoar a proairesis é aperfeiçoar a nossa capacidade de escolha e como devemos bem viver.

Para Bem vivermos faz-se urgente, portanto, uma disciplina centrada na atenção de si e o cultivo da razão.

Portanto, apesar de tudo estar por realizar, ainda... Prossigamos. É tarefa do prokopton!

(Grifos e destaques meus)


______.

ARISTÓTELES. MetafísicaÉtica a Nicômaco; Poética. (Tradução Vincenzo Coceo, Leonel Vallandro e Gerd Bornheim e Eudoro de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1984.

ARRIANO FLÁVIO. O Encheirídion de Epicteto. Edição Bilíngue. Tradução do texto grego e notas Aldo Dinucci; Alfredo Julien. Textos e notas de Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão. Universidade Federal de Sergipe, 2012)

BECK, Judith S. Terapia cognitiva: teoria e prática. Porto Alegre, RS, 2997.

DINUCCI, A.; JULIEN, A. O Encheiridion de Epicteto. Coimbra: Imprensa de Coimbra, 2014.

______. Introdução ao Manual de Epicteto. 3. ed. São Cristóvão: EdiUFS, 2012.

GALENO. On the passions and errors of the soul. Translated by Paul W . Harkins with an introduction and interpretation by Walter Riese. Ohio State University Press, 1963.

GAZOLLA, Rachel.  O ofício do filósofo estóico: o duplo registro do discurso da Stoa, Loyola, São Paulo, 1999.

HADOT, Pierre. The inner citadel: the meditations of Marcus Aurelius. London: Harvard University Press, 2001.

______. A filosofia como maneira de viver: entrevistas de Jeannie Carlier e Arnold I. Davidson. (Trad. Lara Christina de Malimpensa). São Paulo: É Realizações, 2016.

______. Exercícios espirituais e filosofia antiga. Trad. Flávio Fontenelle Loque, Loraine Oliveira. São Paulo: É Realizações, Coleção Filosofia Atual, 2014.

HANH, Thich Nhat. Meditação andando: guia para a paz interior. 21. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

_____. Silêncio: o poder da quietude em um mundo barulhento. Rio de Janeiro, RJ: Harper Collins, 2018.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. "Do ideal de Sumo Bem como um fundamento determinante do fim último da razão pura. Segunda seção". (A805, 806 - B833, 834). Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1994.

______. Sobre a Pedagogia. Tradução de Francisco Cock Fontenella. Piracicaba, SP: Editora Unimep, 1996.

______. Sobre a Pedagogia. Petrópolis, RJ, Editora Vozes, 2021.

______. Resposta à pergunta: o que é “esclarecimento”?. In: Immanuel Kant textos seletos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985.

KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d. (dépôt légal 1985). (O Livro dos Espíritos. Trad. Guillon Ribeiro, ______. O livro dos Espíritos. 93. ed. - 1. reimpressão (edição histórica). Brasília, DF: Feb, 2013. (“As virtudes e os vícios” - Q. 893-912)

MARCO AURÉLIO. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

PLATÃO. Mênon. Trad. Maura Iglésias. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO; São Paulo: Ed. Loyola, 2001.

________. República de Platão. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2012.

________. Teeteto. Trad. Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

________. Timeu. Trad. Maria José Figueredo. Lisboa: Instituto Piaget, 2003.

ROBERTSON, Donald. The Philosophy of Cognitive Behavioural Therapy (CBT): stoic philosophy as rational and Cognitive Psychotherapy. Londres  :Karnac Books, 2010.

______. Pense como um imperador. Trad. Maya Guimarães. Porto Alegre: Citadel Editora, 2020.

______. How to think Like a roman emperor: the stoic philosophy of Marcus Aurelius. New York: St. Martin's Press, 2019.

SELLARS, J. The Art of Living: the stoics on the nature and function of philosophy. Burlington: Ashgate, 2003.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

REFLEXÃO MATINAL XCIX: PARA ONDE DIRECIONARMOS NOSSOS ESFORÇOS?

 

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E, não jogar mais uma oportunidade fora!

Sob "o ponto de vista" da vida futura; por nenhuma "luta" vale esquecer o que já adotamos como princípios que norteiam nossa existência a partir do ESE; cap. II, item 5; do LE. Q. 920 e, muitas outras razões possíveis de serem encontradas nas obras desse mesmo autor. Razões que vão para além do terra-a-terra que já nos fez e nos faz sempre perder muito tempo, desde outras épocas, quando já jornadeamos por essas terras...

(MARQUINHOS, 2017)

E, a isso acrescentamos as reflexões estoicas, na medida em que são ferramentas na “cura das paixões”, em Epicteto, Sêneca e retificação dos “erros da alma”, de Galeno.

"O ser humano nasce com uma inclinação na direção da virtude." (Musônius  Rufus)

"É verdade, Lucílio, dentro de nós reside um espírito divino que observa e rege os nossos actos, bons e maus; e conforme for por nós tratado assim ele próprio nos trata. Sem a divindade ninguém pode ser um homem de bem; ou será que alguém pode elevar-se acima da fortuna sem auxílio divino? As decisões grandiosas e justas, é a divindade que as inspira. Em todo o homem de bem, 'qual seja o deus, ignora-se, mas existe um deus' ”

. ' .

(a última frase é de Vergílio, Aen., VIII, 352 apud SÊNECA, Lucio Aneu, 2014, nesse trecho da Carta 41)


______.

REFERÊNCIAS E SUGESTÕES DE LEITURA

 

ARRIANO FLÁVIO. O Encheirídion. Edição Bilíngue. Tradução do texto grego e notas Aldo Dinucci; Alfredo Julien. Textos e notas de Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão. Universidade Federal de Sergipe, 2012).

CUNHA, Bruno. A gênese da ética em Kant. São Paulo: Editora LiberArs, 2017.

______. Lições sobre a doutrina filosófica da religião. Trad. Bruno Cunha. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.

EPICTÉTE. Entretiens. Livre I, II, III, IV. Trad. Joseph Souilhé. Paris: Les Belles Lettres, 1956.

______. Epictetus Discourses. Trad. Dobbin. Oxford: Clarendon, 2008.

______. O Encheirídion de Epicteto. Trad. Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão: EdiUFS, 2012. (Edição Bilíngue).

______. Testemunhos e Fragmentos. Trad. Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão: EdiUFS, 2008.

______. The Discourses of Epictetus as reported by Arrian; fragments: Encheiridion. Trad. Oldfather. Harvard: Loeb, 1928.  https://www.loebclassics.com/

GALENO. Aforismos. São Paulo: E. Unifesp, 2010.

______. On the passions and errors of the soul. Translated by Paul W . Harkins with an introduction and interpretation by Walter Riese. Ohio State University Press, 1963.

GAZOLLA, Rachel.  O ofício do filósofo estóico: o duplo registro do discurso da Stoa, Loyola, São Paulo, 1999.

HADOT, Pierre. The inner citadel: the meditations of Marcus Aurelius. London: Harvard University Press, 2001.

HANH, Thich Nhat. Meditação andando: guia para a paz interior. 21. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Guido A. de Almeida. São Paulo: Discurso editoria: Barcarola, 2009.

______. Lições de ética. Trad. Bruno Cunha e Charles Fedhaus. São Paulo: Editora Unesp, 2018.

______. O único argumento possível para uma demonstração da existência de Deus. Lisboa: INCM, 2004.

KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d. (dépôt légal 1985). (O Livro dos Espíritos. Trad. Guillon Ribeiro, ______. O livro dos Espíritos. 93. ed. - 1. reimpressão (edição histórica). Brasília, DF: Feb, 2013. (“As virtudes e os vícios” - Q. 893-912)

KING, C. Musonius Rufus: Lectures and Sayings. CreateSpace Independent Publishing Platform, 2011.

LONG, A. A. Epictetus: a stoic and socratic guide to life. New York: Oxford University Press. 2007.

LUTZ, C. Musonius Rufus: the Roman Socrates. Yale Classical Studies 10 3-147, 1947.

ROBERTSON, Donald. The Philosophy of Cognitive Behavioural Therapy (CBT): stoic philosophy as rational and Cognitive Psychotherapy. Londres  : Karnac Books, 2010.

______. Pense como um imperador. Trad. Maya Guimarães. Porto Alegre: Citadel Editora, 2020.

______. How to think Like a roman emperor: the stoic philosophy of Marcus Aurelius. New York: St. Martin's Press, 2019.

RUSSEL, Bertrand. A conquista da felicidade. Rio de Jamneiro, RJ: Nova Fornteira, 2015.

SELLARS, J. The Art of Living: The Stoics on the Nature and Function of philosophy. Burlington: Ashgate, 2003.

SCHLEIERMACHER, F. D. E. Introdução aos Diálogos de Platão. Belo Horizonte, MG: Ed. UFMG, 2018.

SCHNEEWIND, Jeromé. Obligation and virtue: an overwien of Kant's moral philosophy. The Cambridge Companio to Kant. United Kingdom. Cambridge University Press, 1992.

______. Aristotle, Kant and the stoics: rethinnking happiness and duty. Cambridge University Press; Edição: Reprint, 1998.

______. A invenção da autonomia: uma história da filosofia moral moderna. São Leopoldo: Unisinos, 2001.

domingo, 7 de novembro de 2021

REFLEXÃO MATINAL XCVIII: SOBRE A "CURA DAS PAIXÕES" E A CORREÇÃO DOS "ERROS DA ALMA"

 

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Um dia desses, li, em literatura estoica, sobre o homem diligente; que deve lutar para evitar as oscilações das paixões.

Portanto, a reflexão matinal é mais um retorno a este tema: ainda a "cura das paixões":

Comecei a ler, em abril, neste sentido “estoico”, aproveitando o tempo de recuperação, um livro de Galeno, que terminei recentemente.

E, como tenho estudado e escrito aqui, o ponto de partida sempre foi mesmo tomado desde adolescente e que tenho amadurecido e sistematizado as leituras, recentemente (de 5 anos atrás até o momento). Autores como Pierre Hadot, Rachel Gazolla (sobre o “oficio do filósofo estoico”), Donald Robertson (sobre as relações com a TCC/BCT), Aldo Dinucci (Sobre Epicteto), John Sellars (sobre “Arte de viver” estoica) e outros autores que tenho lido e me aprofunda com isto, no tema.

Desde o início, como sempre anoto aqui, neste tema, os estudos sobre a filosofia de Epictetus tem sido referência fundamental. Nas Diatribes, I.I.4 e no Encheiridion, por exemplo, ele recomenda os “exercícios” para o bom uso das representações, que se examine sempre e as teste antes de qualquer assentimento ou rejeição.

É assim, como sempre destaco nas minhas postagens sobre o tema que, já há algum tempo tenho me esforçado em reconfigurar abordagens teóricas, repensando na "aplicação de princípios"; vivendo e aprendendo, e sempre que escrevo tenho como objetivo me orientar no enfrentamento pessoal das recomendações de grandes sábios. É sempre tentativa de ampliar o enfoque existencial num constante “treino” e esforços na reorientação e reformulação de velhos hábitos (ethos); aqui, mais uma vez: a “cura das paixões”! E, prossigo.

Nunca é demais, portanto, que eu me esforce ainda mais e é nesse sentido incluo, mais uma vez, tais “treinos” e esforços; pressupostos os exercícios, retirando de cada releitura dos livros, não muitos, como os que hoje fiz aqui nessa página várias vezes. E, sempre estou relendo alguns trechos de capítulos.

Novamente, portanto, registro a divisão dos “exercícios”: que Pierre Hadot atribuía à maneira de filosofar estoica, em dois grupos:

No primeiro grupo, aqueles que desenvolvem a consciência de si direcionados a uma visão exata do mundo, da natureza e, 

No segundo grupo, aqueles que são orientados para a paz e tranquilidade interior (Inner Citadel).

E, agora, como dizia no início acrescentei ainda, a estes "exercícios", a leitura deste texto de Galeno: “On the passions and errors of the soul.”

Não conhecia este texto de Galeno e, como tenho estudado o tema e também já anotei aqui, não faz muito tempo, tenho focado mais detidamente na filosofia estoica, com objetivos exclusivamente pessoais (um pouco até por aproximação a Kant, sugerido pelo professor Valério Rohden que, num de seus artigos, faz referência a Cícero e fez interessar-me em verificar o quanto este foi estoico); Além do mais, soube, recentemente por um professor que orienta uma pesquisa sobre Immanuel Kant em relação com o Estoicismo. Ou seja: mais uma oportunidade de aprofundar no tema. Mas, aqui sigo com este texto do Galeno e outros textos para reforçar a aprendizagem sobre o tema aguardando, é claro, a defesa desse trabalho para leitura futura.

Sabedoria prática buscada com a leitura dos estoicos sugere que agir agora mesmo é absolutamente necessário, pois, se ficarmos apenas nos projetos de vida, não progrediremos. Dizem eles que, na prática se reconhecesse o que uma pessoa realmente Um bom motivo para os “exercícios” e “mudança de hábitos” ou, mais especificamente; “a cura das paixões” que para Galeno aparecem como “erros da alma”.

Enfim, com estas leituras e só assim os sinais de progresso, se surgirem, deverão ser, como anotado abaixo, conforme extraído do Encheirídion, de Epictetus.

Mais de uma vez retornei, recentemente, a este tema em “lives” e, estou desenvolvendo as reflexões, para um possível artigo ou capítulo de livro, conforme às possibilidades e organização do tempo. Aliás, neste mê, participo de evento sobre Estoicismo em que vou tentar apresenta alguns resultados dessa leituras, teóricos ainda mas o objetivo é desenvolver, com disciplina, a “cura das paixões” ou como queria Galenno: corrigir os “erros da alma.”

Só assim se alcançados, serão “sinais de progresso”:

“[48.b1] Sinais de quem progride: não recrimina ninguém, não elogia ninguém, não acusa ninguém, não reclama de ninguém. Nada diz sobre si mesmo – como quem é ou o que sabe. Quando, em relação a algo, é entravado ou impedido, recrimina a si mesmo. Se alguém o elogia, se ri de quem o elogia. Se alguém o recrimina, não se defende. Vive como os convalescentes, precavendo-se de mover algum membro que esteja se restabelecendo, antes que se recupere.

[48.b2] Retira de si todo o desejo e transfere a repulsa unicamente para as coisas que, entre as que são encargos nossos, são contrárias à natureza. Para tudo, faz uso do impulso amenizado. Se parecer insensato ou ignorante, não se importa. Em suma: guarda-se atentamente como um inimigo traiçoeiro”.

Esboçando um finalzinho; ressalto ser desnecessário dizer que fica evidente que o caminho é progredir e todo por fazer, ainda. É por isso que devemos estar atentos às nossas inúmeras falhas aos “erros da alma”, para os corrigi em nós. É nisso que consiste, até onde consigo compreender o Estoicismo e, principalmente a Filosofia!

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Acrescento ainda um outro texto que faz uma outra abordagem a partir do que está acima sobre "cura das paixões", que reflete também sobre o poder da vontade:

(Extrato dos trabalhos da sociedade espírita de Paris)

Um jovem de vinte e três anos, o Sr. A..., de Paris, iniciado no Espiritismo apenas há dois meses, com tal rapidez assimilou o seu alcance que, sem nada ter visto, o aceitou em todas as suas consequências morais. Dirão que isto não é de admirar da parte de um moço, e só uma coisa prova: a leviandade e um entusiasmo irrefletido. Seja. Mas continuemos. Esse jovem irrefletido tinha, como ele próprio reconhece, um grande número de defeitos, dos quais o mais saliente era uma irresistível disposição para a cólera, desde sua infância. Pela menor contrariedade, pelas causas mais fúteis, quando entrava em casa e não encontrava imediatamente o que queria; se uma coisa não estivesse em seu lugar habitual; se o que tivesse pedido não estivesse pronto em um minuto, entrava em furores, a ponto de tudo arrebentar. Chegava a tal ponto que um dia, no paroxismo da cólera, atirando-se contra a mãe, lhe disse: “Vai-te embora, ou eu te mato!” Depois, esgotado pela superexcitação, caía sem consciência. Acrescente-se que nem os conselhos dos pais nem as exortações da religião tinham podido vencer esse caráter indomável, aliás compensado por vasta inteligência, uma instrução cuidada e os mais nobres sentimentos.

Dirão que é o efeito de um temperamento bilioso-sanguíneo-nervoso, resultado do organismo e, consequentemente, arrastamento irresistível. Resulta de tal sistema que se, em seus desatinos, tivesse cometido um assassinato, seria perfeitamente desculpável, porque teria tido por causa um excesso de bile. Disso ainda resulta que, a menos que modificasse o temperamento, que mudasse o estado normal do fígado e dos nervos, esse moço estaria predestinado a todas as funestas consequências da cólera.

─ Conheceis um remédio para tal estado patológico?

─ Nenhum, a não ser que, com o tempo, a idade possa atenuar a abundância de secreções mórbidas.

─ Ora, o que não pode a Ciência, o Espiritismo faz, não lentamente e por força de um esforço contínuo, mas instantaneamente. Alguns dias bastaram para fazer desse jovem um ser suave e paciente. A certeza adquirida da vida futura; o conhecimento do objetivo da vida terrena; o sentimento da dignidade do homem, revelada pelo livre-arbítrio, que o coloca acima do animal; a responsabilidade daí decorrente; o pensamento de que a maior parte dos males terrenos são a consequência de nossos atos; todas estas ideias, bebidas num estudo sério do Espiritismo, produziram em seu cérebro uma súbita revolução. Pareceu-lhe que um véu se erguera acima de seus olhos e a vida se lhe apresentou sob outra face. Certo de que tinha em si um ser inteligente, independente da matéria, se disse: “Este ser deve ter uma vontade, ao passo que a matéria não a tem. Então, ele pode dominar a matéria.” Daí este outro raciocínio: “O resultado de minha cólera foi tornar-me doente e infeliz, e ela não me dá o que me falta, portanto é inútil, porque assim não progredi. Ela me produz o mal e nenhum bem me dá em troca. Além disto, ela pode impelir-me a atos censuráveis e até criminosos.”

Ele quis vencer, e venceu. Desde então, mil ocasiões surgiram que antes o teriam enfurecido, mas ante elas ficou impassível e indiferente, com grande estupefação de sua mãe. Ele sentia o sangue ferver e subir à cabeça, mas, por sua vontade, o recalcava e o forçava a descer.

Um milagre não teria feito melhor, mas o Espiritismo fez muitos outros, que nossa Revista não bastaria para registrá-los, se quiséssemos relatar todos os que são do nosso conhecimento pessoal, relativos a reformas morais dos mais inveterados hábitos. Citamos este como um notável exemplo do poder da vontade e, além disso, porque levanta um importante problema que só o Espiritismo pode resolver.

A propósito perguntava-nos o Sr. A... se seu Espírito era responsável por seus arrastamentos, ou se apenas sofria a influência da matéria. Eis a nossa resposta:

Vosso Espírito é de tal modo responsável que, quando o quisestes seriamente, detivestes o movimento sanguíneo. Assim, se tivésseis querido antes, os acessos teriam cessado mais cedo e não teríeis ameaçado a vossa mãe. Além disso, quem é que se encoleriza? É o corpo ou o Espírito? Se os acessos viessem sem motivo, poderiam ser atribuídos ao afluxo sanguíneo, mas, fútil ou não, tinham por causa uma contrariedade. Ora, é evidente que contrariado não era o corpo, mas o Espírito, muito suscetível. Contrariado, o Espírito reagia sobre um sistema orgânico irritável, que teria ficado em repouso, se não tivesse sido provocado.

Façamos uma comparação. Tendes um cavalo fogoso. Se souberdes dirigi-lo, ele se submete. Se o maltratardes, ele dispara e vos derruba. De quem a falta? Vossa ou do cavalo?

Para mim, é evidente que vosso Espírito é naturalmente irascível, mas, como cada um trás consigo o seu pecado original, isto é, um resto das antigas inclinações, não é menos evidente que, em vossa existência precedente, deveis ter sido um homem de uma extrema violência que provavelmente tivestes que pagar muito caro, talvez com a própria vida. Na erraticidade, vossas boas qualidades vos ajudaram a compreender os erros. Tomastes a resolução de vos vencer, e para isto lutar em nova existência. Mas, se tivésseis escolhido um corpo mole e linfático, não encontrando qualquer dificuldade, vosso Espírito nada teria ganho, o que resultaria na necessidade de recomeçar. Foi com esse objetivo que escolhestes um corpo bilioso, a fim de ter o mérito da luta. Agora a vitória está ganha. Vencestes o inimigo do vosso repouso e nada pode entravar o livre exercício de vossas boas qualidades.

Quanto à facilidade com que aceitastes e compreendestes o Espiritismo, ela se explica pela mesma causa. Éreis espírita há muito tempo. Esta crença era inata em vós, e o materialismo foi apenas o resultado da falsa direção dada às vossas ideias. A princípio abafada, a ideia espírita ficou em estado latente e bastou uma centelha para despertá-la. Bendizei a Providência que permitiu que esta centelha chegasse em boa hora para deter uma inclinação que talvez vos tivesse causado amargos desgostos, ao passo que vos resta uma longa carreira a percorrer na via do bem.

Todas as filosofias se chocaram contra esses mistérios da vida humana, que pareciam insondáveis até que o Espiritismo lhes trouxe o seu facho.

Em presença de tais fatos, ainda se pode perguntar para que ele serve? Não estamos em condições de emitir bons augúrios cerca do futuro moral da Humanidade quando ele for compreendido e praticado por todo mundo?

Volto agora para a pesquisa!

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"Mantenha-se forte, mantenha-se bem" (Sêneca)

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REFERÊNCIAS E SUGESTÕES DE LEITURA

 

ARRIANO FLÁVIO. O Encheirídion. Edição Bilíngue. Tradução do texto grego e notas Aldo Dinucci; Alfredo Julien. Textos e notas de Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão. Universidade Federal de Sergipe, 2012).

CUNHA, Bruno. A gênese da ética em Kant. São Paulo: Editora LiberArs, 2017.

______. Lições sobre a doutrina filosófica da religião. Trad. Bruno Cunha. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.

EPICTÉTE. Entretiens. Livre I, II, III, IV. Trad. Joseph Souilhé. Paris: Les Belles Lettres, 1956.

______. Epictetus Discourses. Trad. Dobbin. Oxford: Clarendon, 2008.

______. O Encheirídion de Epicteto. Trad. Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão: EdiUFS, 2012. (Edição Bilíngue).

______. Testemunhos e Fragmentos. Trad. Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão: EdiUFS, 2008.

______. The Discourses of Epictetus as reported by Arrian; fragments: Encheiridion. Trad. Oldfather. Harvard: Loeb, 1928.  https://www.loebclassics.com/

GALENO. Aforismos. São Paulo: E. Unifesp, 2010.

______. On the passions and errors of the soul. Translated by Paul W . Harkins with an introduction and interpretation by Walter Riese. Ohio State University Press, 1963.

GAZOLLA, Rachel.  O ofício do filósofo estóico: o duplo registro do discurso da Stoa, Loyola, São Paulo, 1999.

HADOT, Pierre. The inner citadel: the meditations of Marcus Aurelius. London: Harvard University Press, 2001.

HANH, Thich Nhat. Meditação andando: guia para a paz interior. 21. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Guido A. de Almeida. São Paulo: Discurso editoria: Barcarola, 2009.

______. Lições de ética. Trad. Bruno Cunha e Charles Fedhaus. São Paulo: Editora Unesp, 2018.

______. O único argumento possível para uma demonstração da existência de Deus. Lisboa: INCM, 2004.

KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d. (dépôt légal 1985). (O Livro dos Espíritos. Trad. Guillon Ribeiro, ______. O livro dos Espíritos. 93. ed. - 1. reimpressão (edição histórica). Brasília, DF: Feb, 2013. (“As virtudes e os vícios” - Q. 893-912).

______. Revue Spirite: journal d’éstudes psychologiques. Paris: Typographie de Cosson et comp., 1863.

KING, C. Musonius Rufus: Lectures and Sayings. CreateSpace Independent Publishing Platform, 2011.

LONG, A. A. Epictetus: a stoic and socratic guide to life. New York: Oxford University Press. 2007.

LUTZ, C. Musonius Rufus: the Roman Socrates. Yale Classical Studies 10 3-147, 1947.

ROBERTSON, Donald. The Philosophy of Cognitive Behavioural Therapy (CBT): stoic philosophy as rational and Cognitive Psychotherapy. Londres  : Karnac Books, 2010.

______. Pense como um imperador. Trad. Maya Guimarães. Porto Alegre: Citadel Editora, 2020.

______. How to think Like a roman emperor: the stoic philosophy of Marcus Aurelius. New York: St. Martin's Press, 2019.

RUSSEL, Bertrand. A conquista da felicidade. Rio de Jamneiro, RJ: Nova Fornteira, 2015.

SELLARS, J. The Art of Living: The Stoics on the Nature and Function of philosophy. Burlington: Ashgate, 2003.

SCHLEIERMACHER, F. D. E. Introdução aos Diálogos de Platão. Belo Horizonte, MG: Ed. UFMG, 2018.

SCHNEEWIND, Jeromé. Obligation and virtue: an overwien of Kant's moral philosophy. The Cambridge Companio to Kant. United Kingdom. Cambridge University Press, 1992.

______. Aristotle, Kant and the stoics: rethinnking happiness and duty. Cambridge University Press; Edição: Reprint, 1998.

______. A invenção da autonomia: uma história da filosofia moral moderna. São Leopoldo: Unisinos, 2001.

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

MACHADO DE ASSIS NOS INTERVALOS (III)

 


Agora mesmo, durante a manhã, na pausa de hoje, relendo, como é praxe, durante os recessos, uma das obras de Machado de Assis e, recordando, acabei de reler, mais uma vez, parte deste: "The Collected Stories of Machado de Assis”; que li, em 2018.

E, na sequência, acabei de reler uma resenha (dez. 2019) de "Flora Thomson-DeVeaux, doutora pela Brown University, que publiquei aqui no Blog, e à época finalizava uma nova tradução das Memórias póstumas de Brás Cubas para o inglês, e apresenta The Collected Stories of Machado de Assis, volume com todos os 76 contos recolhidos por Machado de Assis, em livro, traduzidos para o inglês por Margaret Jull Costa e Robin Patterson

E, ainda, como desde há muito tempo, tenho estudado a obra do autor; nas pausas, sempre retorno a um de seus títulos. 

A este estudo que estou acompanhando, acrescentei uma edição da Nova Fronteira: "Todos os romances e contos consagrados de Machado de Assis”:

“Com o primeiro volume: a denominada, fase romântica de Machado: "Ressurreição", "A mão e a luva", "Helena e Iaiá Garcia"...

segundo volume: as obras-primas de Machado de Assis... naquilo em que se pode ler de seu “realismo”: "Memórias póstumas de Brás Cubas", "Quincas Borba" e "Dom Casmurro"...

E, o terceiro volume: seus dois últimos romances escritos pelo “Bruxo do Cosme Velho”, e presença do conselheiro Aires, em “Memorial de Aires”, ‘espécie de alter-ego do escritor’, que quando li me surpreendeu. Além de contos.”

Hoje, 01 de novembro de 2021, aproveitando após ler “Toledot”, reli Esaú e Jacó:

"Originalmente publicado em 1904, Esaú e Jacó trata de uma “história simples, acontecida e por acontecer”: dois jovens bem-nascidos, os gêmeos Pedro e Paulo, digladiam-se em intermináveis conflitos e reconciliações desde o útero da mãe até o começo da idade adulta. Os irmãos lutam pelo amor da jovem Flora Batista, cujo enredo é narrado em terceira pessoa pelo conselheiro Aires - alter-ego de Machado de Assis, que usa o personagem para as suas reflexões autorais. O narrador-personagem compartilha com o leitor suas indagações sobre a arte do romance e, por isso, o crítico e professor Hélio Guimarães, que assina a introdução e as notas do volume, considera essa obra uma verdadeira “teoria da composição ficcional”. Ambientado no Rio de Janeiro durante os anos finais do Império e o início da República, o livro ecoa diversos acontecimentos da história do Brasil - incluindo a Abolição, a Proclamação da República e as revoltas contra o governo Floriano Peixoto -, além de passagens da Bíblia, da Divina comédia e do Fausto de Goethe."

Grande autor! Indispensável!

Agora, ao trabalho, voltemos ao texto principal!

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MACHADO DE ASSIS. Todos os romances e contos consagrados de Machado de Assis. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 2016. ("Box" em três volumes).

______. Memorial de Aires. Porto Alegre, RS: L&PM, 2009.

______. Esaú e Jacó. Porto Alegre, RS: L&PM, 1998.

 

JORNADA ESTUDANDO KARDEC NO INTERIOR DE SÃO PAULO - IDEAK

Jornada Estudando Kardec no Interior de São Paulo . Cosme Massi compartilha seus mais de 30 anos de experiência em estudos sobre Allan Karde...