domingo, 2 de maio de 2021

REFLEXÃO MATINAL LXXXV: "WELTANSCHAUUNG" E "DICOTOMIA DO CONTROLE" NA VIDA DIÁRIA

(IMAGEM: "Pinterest")
 

Ainda há pouco refletia sobre alguns textos de autores estoicos sobre o tema da “morte”. Sem dúvidas há especificidades estoicas às quais, desde que, ainda adolescente, comecei a estudar não consegui aderir até hoje, claro.

Isso decorre evidentemente do fato de que minha “Weltanschauung[1]” adotada antes de ter acesso aos estoicos ainda permanece. Houve sempre, de minha parte uma predileção especial aos textos e autores estoicos que preservaram ou tentaram acomodar em seus textos certos aspectos “metafísicos”. Li muito Sêneca, Cícero (que se aproximou do estoicismo) e Marco Aurélio com essa perspectiva. Atualmente, sigo estudando os originais do Entretiens de Epicteto, que se distancia bastante da metafísica; no entanto, traz o que tenho procurado entender como uma “metodologia” para os estudos do estoicismo.  Tenho aqui me apoiado em interpretações de Pierre Hadot, no que ele chamou de “exercícios espirituais”. É neste sentido que prossigo com a leitura da obra dos estoicos

Disso, tem se firmado o que desde o início me propus como meta, típica de quem se pretenda estudante das propostas estoicas: a busca por serenidade. Tarefa que exige no que entendo como “metodologia”: esforço e prática constantes na intenção de cada vez mais internalizar convicções que eu possa agregar à minha “Weltanschauung”.

Nesse caminho pretendo aprofundar a compreensão de que a felicidade depende de uma escolha nossa, jamais de coisas externas (nisso, é fundamental aderir à atenção (como nas Diatribes. Livro IV. XII, capítulo inteiro sobre a atenção (prosochéπερί προσοχῆς), que nos deve orientar na direção correta e nos faz estarmos atentos à “dicotomia do controle”.

Pois, é certo que haverá o que lhe foge ao controle, como diz Epicteto, no Encherídion, I, 1. Mas isso é o que a vida exige de cada um:  o esforço, prática e “exercício” no que está sob seu controle: o interior. O que é exterior está para além do nosso controle.

Nos acontecimentos externos, algo há que não está sob nosso controle, foge-nos totalmente. Portanto, nas adversidades, por termos nos afastado da lei natural adotamos julgamentos bastante equivocados sobre os eventos à nossa volta. Treino e esforço na retomada da direção, de retorno à Lei, nos darão bases mais sólidas para reformulação do nosso comportamento e, como consequência, qualificaremos nossos hábitos (ethos).

Portanto, para tais “exercícios” e “metodologia”, necessário se faz uma disciplina que tem por meta equilibrar as emoções que, para Epicteto, por exemplo, é fundamentalmente essencial para a formação da alma.

 “O homem que se exercita contra tais representações externas é o verdadeiro atleta em treino. [...] Grande é a luta, divina é a tarefa; o prêmio é um reino, liberdade [ἐλευθερίας], serenidade [εὐροίας], paz [ataraxia - ἀταραξία].”

E, é tarefa principal de quem pretenda reformular os hábitos, por exemplo, reeducar-se na busca do Bem que está ao alcance de cada um, para que, daí descubra que tudo o que lhe sucede durante a vida não é necessariamente um mal a paralisá-lo.

“...se queres progredir, conforma-te em parecer insensato e tolo quanto às coisas exteriores. Não pretendas saber coisa alguma.” (EPICTETO. Encheiridion. XIII).

E, como disse Marco Aurélio:

 “Ao amanhecer, diga a si mesmo: hoje me depararei com um indiscreto, um ingrato, um insolente, um desleal, um invejoso, um antissocial. Tudo isso lhes sucede por sua ignorância do bem e do mal. Mas eu, que vi a natureza do bem, que é o certo, e a do mal, que é o errado, e a da pessoa que comete a falta, que é afim à minha, partícipe não do mesmo sangue ou semente, mas da mesma mente e da mesma partícula divina, não posso sofrer danos de nenhum deles porque nenhum me infectará com seu erro. Nem posso indispor-me com um semelhante ou odiá-lo, porque nascemos para uma tarefa comum, como os pés, como as mãos, como as pálpebras, como os maxilares superior e inferior. De modo que agir uns contra os outros vai contra a natureza: e oposição são a ira e a rejeição.  (MARCO AURÉLIO. Meditações, II, 1)”

É, portanto, tarefa pessoal e intransferível nos qualificar para mudança dos nossos hábitos.

Vejamos ainda o que Sêneca escreveu no seu "De tranquillitate animi" (14.2), já postado aqui num dia como esse:

"Vtique animus ab omnibus externis in se reuocandus est: sibi confidat, se gaudeat, sua suspiciat, recedat quantum potest ab alienis et se sibi adplicet, damna non sentiat, etiam aduersa benigne interpretetur".

"Seja como for, a alma deve recolher‐se em si mesma, deixando todas as coisas externas: que ela confie em si, se alegre consigo, estime o que é seu, se aparte o quanto pode do que é alheio, e se dedique a si mesma; que ela não sinta as perdas e interprete com benevolência até mesmo as coisas adversas".

Daí a imperativa necessidade de cada um voltar-se para si e ser livre...

______.

ARRIANO FLÁVIO. O Encheirídion de Epicteto. Edição Bilíngue. Tradução do texto grego e notas Aldo Dinucci; Alfredo Julien. Textos e notas de Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão. Universidade Federal de Sergipe, 2012.

DINUCCI, A.; JULIEN, A. O Encheiridion de Epicteto. Coimbra: Imprensa de Coimbra, 2014.

EPICTETO. Entretiens. Livre I, II, III, IV. Trad. Joseph Souilhé. Paris: Les Belles Lettres, 1956.

______. Epictetus Discourses. Book I. Trad. Dobbin. Oxford: Clarendon, 2008.

______. O Encheirídion de Epicteto. Trad. Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão: EdiUFS, 2012. (Edição Bilíngue)

______. Testemunhos e Fragmentos. Trad. Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão: EdiUFS, 2008.

EPICTETUS. The Discourses of Epictetus as reported by Arrian; fragments; Encheiridion. Trad. Oldfather. Harvard: Loeb, 1928.  https://www.loebclassics.com/

HADOT, Pierre. The inner citadel: the meditations of Marcus Aurelius. London: Harvard University Press, 2001.

HANH, Thich Nhat. Meditação andando: guia para a paz interior. 21. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

IRVINE, William B. A Guide to the Good Life: the ancient art of Stoic joy. New York: Oxford University Press, 2009.

KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d. (dépôt légal 1985). (O Livro dos Espíritos. Trad. Guillon Ribeiro, ______. O livro dos Espíritos. 93. ed. - 1. reimpressão (edição histórica). Brasília, DF: Feb, 2013.

LONG, A.A. A stoic and Socratic guide to life. New York: Oxford University Press, 2007.

______. Epictetus: a stoic and socratic guide to life. New York: Oxford University Press. 2007.

______. (Org.) Primórdios da filosofia grega. São Paulo: Ideias e Letras, 2008..

MARCO AURÉLIO. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Livro II. 1)

PRITCHARD, M. “Philosophy for Children”. Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2002. Acessado em 19 de agosto de 2016; Fonte: http://plato.stanford.edu/entries/children/ .

SÉNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2014.



[1] Entendida como um conjunto ordenado de valores. Uma maneira de compreender a época ou o mundo em que se vive. Cosmovisão.

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