Em sua obra Träume eines Geistesehers - “Sonhos de um
vidente de espíritos" , Kant apresenta o que, geralmente, chamam de definição clássica de
espírito: um "ser" imaterial, simples, dotado de razão e que pode ocupar um "ser" material (corpo) sem lhe causar a força da impenetrabilidade. É preciso compreender que
Kant trata do conceito de espírito tendo por base uma crítica ao racionalismo
que define o conceito de espírito sem, ao menos, comprovar ou demonstrar a sua
existência.
E, diz Kant, sobre a
definição tanto de espírito como um ser material:
Espírito: “Só podereis
manter, portanto, o conceito de um espírito, se pensardes em seres que poderiam
estar presentes mesmo em um espaço cheio de matéria, portanto seres que não
possuem em si a propriedade da impenetrabilidade e que nunca constituiriam um
todo sólido, estejam reunidos no número que quiser. Seres simples desta espécie
serão chamados seres imateriais e, se possuírem razão, espíritos. (Träume, AA
02: 321).
Um ser material, corpo: “Mas
substâncias simples, cuja composição resulta em um todo impenetrável e extenso,
serão chamadas unidades materiais, e seu todo, matéria. Ou o nome de um
espírito é uma palavra sem qualquer sentido ou seu significado é o indicado.
(TG, AA 02: 321).”
Assim, espírito é
definido como um ser imaterial, simples e dotado de razão, enquanto que o corpo
é um ser material, simples, que pode ser um agregado de partes simples formando
um composto. O corpo quando ligado a um ser imaterial: mente/espírito, dá-lhe
vida e o corpo passa a ser , um corpo dotado de razão; mente e corpo.
O grande problema que me interessa é este: mente e corpo, duas
espécies diferentes podem complementar-se. Daí a reflexão que tenho feito sobre
a relação mente e corpo. Antigo problema da Filosofia desde a
Antiguidade que retomo a partir da Bibliografia indicada abaixo e seguirei com mais
estudos que tem surgido sobre o tema.
E, aqui, na hora do
cafezinho, estudando um texto de Paul Guyer, o mesmo que usei para
elaboração de um texto para participação num evento e sempre consta aqui entre as
referências mais lidas. Relendo a Crítica da razão pura, trechos da Crítica
da razão prática e da Crítica da faculdade do juízo, para as pesquisas costumeiras, ocorreu-me
publicar, mais uma vez esta passagem da Crítica da razão prática (KpV):
"Duas coisas
enchem o ânimo de admiração e veneração sempre nova e crescente, quanto mais
freqüente e persistentemente a reflexão ocupa-se com elas; o céu estrelado
acima de mim e a lei moral em mim. Não me cabe procurar e
simplesmente presumir ambas como envoltas em obscuridade, ou no transcendente
além de meu horizonte; vejo-as ante mim e conecto-as imediatamente com a
consciência de minha existência. A primeira começa no lugar que ocupo no
mundo sensorial externo e estende a conexão, em que me encontro, ao imensamente
grande com mundos sobre mundos e sistemas de sistemas e, alem disso, ainda a
tempos ilimitados de seu movimento periódico, seu início e duração. A segunda
começa em meu si-mesmo [Selbst] invisível, em minha personalidade, e expõe-se
em um mundo que tem verdadeira infinitude, mas que é acessível somente ao
entendimento e com o qual (mas deste modo também ao mesmo tempo com todos
aqueles mundos visíveis) reconheço-me, não como lá, em ligação meramente
contingente mas em conexão universal e necessária. O primeiro espetáculo de
uma inumerável quantidade de mundos como que aniquila minha importância
enquanto criatura animal, que tem de devolver novamente ao planeta (um simples
ponto no universo a matéria da qual ela se formara, depois que fora por um
curto espaço de tempo (não se sabe como) dotada de força vital. O segundo
espetáculo, ao contrário, eleva infinitamente meu valor enquanto
inteligência, mediante minha personalidade, na qual a lei moral revela-me uma
vida independente da animalidade e mesmo de todo o mundo sensorial, pelo menos
o quanto se deixa depreender da determinação conforme a fins de minha
existência por essa lei, que não está circunscrita a condições e limites dessa
vida mas penetra o infinito.”
Ora, prosseguindo,
portanto, destaco também essa, pois vejo aqui o tão conhecido problema corpo e
alma (o velho problema mente-corpo) numa clara interdependência, um dos temas principais para este blog:
“O homem tem sido
criado para receber as impressões e sentimentos que o mundo deve despertar
nele, por este corpo que é a parte visível de seu eu, e cuja matéria serve não
somente ao espírito invisível que ocupa este corpo, de modo que ali se imprimam
os primeiros conceitos dos objetos exteriores, mas é também indispensável na
atividade interior da repetição, da ligação, enfim do pensamento (KANT AA
1:355)”
...
“L’homme a été crée pour
recevoir les impressions et émotions que le monde doit éveiller em lui par ce
corps qui est la partie visible de son être, et dont la matière sert non
seulement à l’esprit invisible qui habite ce corps, pour que s’y impriment es
premiers concepts des objets extérieurs, mais est aussi indispensable dans
l’activité intérieure de la répétion, de la liasion, bref de la pensée”. (KANT,
Vrin 1984).
E, encerro com esta, da Crítica da razão pura também: “A idéia psicológica não
pode também ter outro significado que não seja o de esquema de um conceito
regulador; pois ainda que só quiséssemos indagar se a alma não será em si de
natureza espiritual, esta interrogação seria destituída de sentido. Com efeito,
mediante tal conceito, não excluo apenas a natureza corpórea, mas toda a
natureza em geral, isto é, todos os predicados de qualquer experiência possível
e, por conseguinte, todas as condições para pensar um objeto para tal conceito,
ou seja, tudo o que afinal me permite dizer que tal conceito tem um sentido.”
(KANT, Do propósito final da dialéctica natural da razão humana, 1994)
(grifos e destaques meus)
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