domingo, 3 de outubro de 2021

REFLEXÃO MATINAL XCIII: O ESTOICISMO É, ANTES DE TUDO, UMA FILOSOFIA

 

E, enquanto faço mais uma das necessárias pausas no texto principal a ser entregue, vou terminando esse excelente livro de John Sellaers

No que acrescento aqui, hoje, como “reflexão matinal”, à maneira dos estoicos, tomo como ponto de partida, um trecho de outro texto de John Sellars  (SELLARS, 2016)[1]. A este, acrescento um comentário feito há algum tempo e uma série de sugestões de leituras das que tenho feito e indicado aqui.

“Muitos dos que estão interessados ou se têm envolvido no renascimento do estoicismo dirão que ele pode ajudar-nos a ter uma vida melhor e mais feliz. À primeira vista, é possível que isso nos leve a considerar a ressurgência do interesse pelo estoicismo como parte da “indústria da felicidade”. Aos insatisfeitos, desiludidos e deprimidos que procuraram em vão algo para alegrá-los, talvez o estoicismo seja a próxima coisa a ser tentada para ajudá-los a superar a tristeza e a recuperar a joie de vivre. Se falarmos do estoicismo como forma de terapia ou como dotado de elementos terapêuticos, decerto tal impressão pode ser transmitida: o estoicismo oferece uma terapia, mas uma terapia para tratar o quê? Parece natural supor que a resposta seja: “uma terapia para tratar a infelicidade”. Com efeito, os estoicos antigos visavam à eudaimonía, o que normalmente se traduz por “felicidade”.

O que desejo é pôr em xeque tal visão ou, quando menos, pôr-lhe ressalvas. O estoicismo não o fará feliz — ao menos não no sentido que a palavra “felicidade” costuma ter quando usada na cultura da autoajuda moderna. Não se trata de pensar de uma dada maneira a fim de garantir dentro de si um sentimento cálido, vago.”

Mais uma vez, meditava, há pouco, sobre se o Estoicismo NÃO é mera "autoajuda"- daquelas que muitos pagam horrores por ouvir o que se quer ouvir; do autor que foi pago exatamente para isso: para salvar as “egoidades”.

Desde que me percebi, interessado na temática, embora já tenha adotado, bem antes, um outro referencial principal, há muito tempo; passei a pensar nas referências todas, tidas como “autoajuda” (que, aliás, só ajudam quem recebe fortunas para dizê-las). Portanto, elas tem sempre um mesmo “padrão”.

Há entre essas obras as que ensinam que a todos, tudo é possível de realizar-se; basta que se “empreenda”. E, numa outra direção (que bem compreendida, aceito): as que recomendam resignação perante os insucessos e desditas. 

Notório que, por vivermos numa sociedade imediatista que defende, valoriza e divulga os que “fazem sucesso”, hajam até administradores para contas de redes sociais para mediar o alcance dessa influência ou tornar um determinado sujeito ou instituição aceito e popular: os "influencer".

Voltei a pensar nessa questão; já escrevi isto aqui. Não me ocupo, é evidente, em “mudar o mundo”, o que seria uma “contradição”, tendo em vista o estilo adotado para esta página, este blog.  Sempre, como “pano de fundo” está a necessidade de uma guinada, no ponto de vista pessoal, na compreensão de que a vida deve ser operada, numa outra chave de interpretação. Foi na esteira dessa reflexão que iniciei, há alguns anos, a leitura dos estoicos e, no que tenho estudado e escrito por aqui: os ensinamentos são aplicáveis “de mim para mim”. Compartilho-os, se houver alguém mais a ler comigo, sempre há um ou outro! Mas, o objetivo fundamental é o da própria “cura das paixões”.

Dessas leituras todas, tenho extraído, entre outras a seguinte recomendação: primeiro, um exercício de distanciamento, para longe de propostas “mercadológicas” de sucesso rápido, é o passo inicial. Segundo, a dedicação e atenção (prosoché - προσοχῆς) ao tempo e disposição para uma reviravolta e “olharmos para dentro”, para um autoconhecimento.

É aqui, juntando às reflexões de uma “filosofia de vida” adotada ainda na adolescência, que passei a estudar a obra dos estoicos, apresentada a mim, como mera autoajuda, equívoco que com o tempo vou corrigindo. Ora, se for “mera “autoajuda”, temos uma autoajuda de uma qualidade imprescindível, exatamente por apresentar uma proposta de “olhar para dentro, de autoconhecimento” e que necessariamente, não pagamos para alcançá-la.

Assim, diz Musônio Rufo a alguém que se sentia cansado e derrotado: 

“Por que estás parado? Pelo que esperas? Que o próprio Deus, estando ao teu lado, dirija-te a palavra? Corta a parte morta da tua alma, e conhecerás Deus”.  

A consequência deste "despertar", lido em Epicteto, é aquele primeiro passo dito acima.

Portanto:

Ser estoico, afinal, o que é?  Do mesmo modo que chamamos “fidíaca” a estátua modelada segundo a arte de Fídias, mostrai-me igualmente um ser humano enfermo e feliz, em perigo e feliz, desprestigiado e feliz. Mostrai-me. Pelos deuses! Desejo ver um estoico. (EPICTETO. D. 2.19.23-27). 

Talvez, não ser um estoico, sabido que já tenho uma “filosofia de vida” bem definida a orientar-me, como também disse acima, mas revisitar as obras clássicas, é o desafio posto e mantido. Não dá para aceitar nem cogitar minimamente, as estapafúrdias propostas hodiernas.

Ademais, escolho encerrar com dois pequenos textos; um de Sêneca e outro de Aristóteles:

“Queres saber qual é a coisa que com maior empenho deves evitar? A multidão! Ainda não estás em estado de frequentá-la em segurança. Eu confesso-te sem rodeios a minha própria fraqueza: nunca regresso com o mesmo caráter com que saí de casa; algo que já pusera em ordem é alterado, algo do que já conseguira eliminar, regressa!” (SÉNECA. 2014).

"A multidão mais grosseira considera que o bem e a felicidade é o prazer, e consequentemente adoram uma vida de gratificação […] Assim, parecem completamente escravizados, dado escolherem uma vida que pertence aos ruminantes. Mas têm realmente um argumento em sua defensa, dado que muitos dos poderosos […] têm a mesma convicção. (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 1095 b; 16-23)"

São "exercícios" pessoais de reflexão. Abaixo, algumas indicações de leituras por onde tenho caminhado.

(Grifos e destaques são meus)

Link: (09.01.2022) - https://platosacademy.org/living-a-good-life/

______.

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

ARRIANO FLÁVIO. O Encheirídion. Edição Bilíngue. Tradução do texto grego e notas Aldo Dinucci; Alfredo Julien. Textos e notas de Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão. Universidade Federal de Sergipe, 2012.

DINUCCI, A.; JULIEN, A. O Encheiridion de Epicteto. Coimbra: Imprensa de Coimbra, 2014.

EPICTETO. Entretiens. Livre I, II, III, IV. Trad. Joseph Souilhé. Paris: Les Belles Lettres, 1956.

______. Epictetus Discourses. Book I. Trad. Dobbin. Oxford: Clarendon, 2008.

______. O Encheirídion de Epicteto. Trad. Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão: EdiUFS, 2012. (Edição Bilíngue)

______. Testemunhos e Fragmentos. Trad. Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão: EdiUFS, 2008.

EPICTETUS. The Discourses of Epictetus as reported by Arrian; fragments; Encheiridion. Trad. Oldfather. Harvard: Loeb, 1928.  https://www.loebclassics.com/

HADOT, Pierre. The inner citadel: the meditations of Marcus Aurelius. London: Harvard University Press, 2001.

______. O que é filosofia antiga? Trad. Dion Davi Macedo. 6 ed. São Paulo:  Edições Loyola, 2014.

______. A filosofia como maneira de viver: entrevistas de Jeannie Carlier e Arnold I. Davidson. (Trad. Lara Christina de Malimpensa). São Paulo: É Realizações, 2016

______. Exercícios espirituais e filosofia antiga. Trad. Flavio Fontenelle Loque e Loraine Oliveira. Prefácio de Davidson, Arnold. São Paulo: É Realizações, 2014.

SÉNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2014.


SUGESTÕES DE LEITURA


AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Penguin/Companhia das Letras, 2017.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1987 (col. Os Pensadores).

______. Ethica Nicomachea - III 9 - IV 15: As virtudes morais. Trad. Marco Zingano. São Paulo: Odysseus Editora, 2019.

DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 3. ed. – Porto Alegre, RS: Artmed, 2019.

______. Religião, psicopatologia e saúde mental. Porto Alegre, RS: Artmed, 2008.

DESCARTES, René.  As paixões da alma. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

FRANKL, Viktor. O sofrimento humano: Fundamentos antropológicos da psicoterapia. Trad. Bocarro, Karleno e Bittencourt, Renato. Prefácio, Marino, Heloísa Reis. São Paulo: É Realizações, 2019.

______. Em busca de sentido. 25. ed. - São Leopoldo, RS: Sinodal; Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

______. Yes to Life: In spite of everything. Beacon Press, 2020.

______. Um sentido para a vida: psicoterapia e humanismo. Aparecida, SP: Ideias e letras, 2005.

HANH, Thich Nhat. Meditação andando: guia para a paz interior. 21. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

______. Silêncio: o poder da quietude em um mundo barulhento. Rio de Janeiro, RJ: Harper Collins, 2018.

JASPERS, Karl. Plato and Augustine. Edited by Hannah Arendt. Translated by Ralph Manheim. New York: Harvest Book, 1962.

______. Introdução ao pensamento filosófico. 16. ed. São Paulo: Cultirx, 1971.

JONAS, Hans. Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio responsabilidade". São Paulo: Paulus, 2013. (Ethos) 

KANT, Immanuel. Observações sobre o sentimento do belo e do sublime. Papirus, Campinas, 1993.

______. Lições de ética. Trad. Bruno Cunha e Charles Feldhaus. São Paulo: Editora Unesp, 2018.

______. Crítica da razão prática. Trad. Valério Rohden. São Paulo: Martins fontes, 2002.

______. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso editorial, 2009. 

KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d. (dépôt légal 1985). (O Livro dos Espíritos. Trad. Guillon Ribeiro, ______. O livro dos Espíritos. 93. ed. - 1. reimpressão (edição histórica). Brasília, DF: Feb, 2013. (Q. 903-919 "paixões" e 920-933 "felicidade")

MARCO AURÉLIO. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Livro II. 1)

PLATÃO. Mênon. Trad. Maura Iglésias. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO; São Paulo: Ed. Loyola, 2001.

________. República de Platão. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2012.

________. Teeteto. Trad. Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

________. Timeu. Trad. Maria José Figueredo. Lisboa: Instituto Piaget, 2003.

SCHLEIERMACHER, F. D. E. Introdução aos Diálogos de Platão. Belo Horizonte, MG: Ed. UFMG, 2018.

SELLARS, J. The art of living: the stoics on the nature and function of philosophy. Burlington: Ashgate, 2003.



[1] Texto traduzido por Donato Ferrara. John Sellars é pesquisador no Departamento de Filosofia do King’s College de Londres e autor de obras como The art of living (2003) e Stoicism (2006), além de diversos artigos sobre filosofia antiga e renascentista. Mantém o blog “Miscellanea Stoica“, voltado para um público não exclusivamente acadêmico, e um site oficial. Publicado em 15/10/2016 em “Miscellanea Stoica”.

 


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