sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

REFLEXÃO MATINAL LXVIII: ASKESIS

A Jurubeba Cultural:  Raio de luz ...
(IMAGEM: "Pinterest")


Epicteto, seguindo a filosofia de Sócrates mostra que a filosofia deve ser entendida como a busca da sabedoria pela razão. É a sabedoria que nos capacita bem viver ou viver de modo pleno e feliz e de acordo com o que, porventura, teorizamos. Para Sócrates, como uma vida não examinada não merece ser vivida, a filosofia se configura como um caminho na construção moral do homem que se dispõe a pensar, a pensar bem; e, isto deve estar em consonância com a prática.  Assim, como Sócrates, Epicteto mostra essa mesma concepção de filosofia no seu Encheirídion. Já citamos aqui, por estarmos estudando os fundamentos do estoicismo, o capítulo XLVI, em que recomenda:

“Jamais te declares filósofo. Nem, entre os homens comuns, fales frequentemente sobre princípios filosóficos, mas age de acordo com os princípios filosóficos. Por exemplo: em um banquete, não discorras sobre como se deve comer, mas come como se deve. Lembra que Sócrates, em toda parte, punha de lado as demonstrações, de tal modo que os outros o procuravam quando desejavam ser apresentados aos filósofos por ele. E ele os levava! [XLVI.2] E dessa maneira, sendo desdenhado, ele ia.  Com efeito, caso, em meio a homens comuns, uma discussão sobre algum princípio filosófico sobrevenha, silencia ao máximo, pois o perigo de vomitar imediatamente o que não digeriste é grande. E quando alguém te falar que nada sabes e não te morderes, sabe então que começaste a ação. Do mesmo modo que as ovelhas não mostram o quanto comeram, trazendo  a forragem ao pastor, mas, tendo digerido internamente o pasto, produzem lã e leite,  também tu não mostres os princípios filosóficos aos homens comuns, mas, após tê-los digerido, <mostra> as ações.”

E, reforça, no capítulo XLIX:

“Quando alguém se crê merecedor de reverência por ser capaz de compreender e interpretar os livros de Crisipo, diz para ti mesmo: “Se Crisipo não escreveu de modo obscuro, ele não tem pelo que se crer merecedor de reverência”. Mas o que eu desejo? Conhecer a natureza e segui-la. Busco então quem a interpreta. Ouvindo que é Crisipo, vou a ele. Mas não compreendo seus escritos. Busco então quem os interpreta – até aí, absolutamente nada há que mereça reverência. Quando eu acho o intérprete, resta-me fazer uso das coisas prescritas – unicamente isso é digno de reverência. Ora, se admiro o próprio <ato de> interpretar, que outra coisa me torno senão gramático ao invés de filósofo? Com a diferença que, no lugar de Homero, interpreto Crisipo. Então, quando alguém me disser “Interpreta algo de Crisipo para mim”, sobretudo enrubescerei quando não for capaz de exibir ações semelhantes às palavras e condizentes <com elas>.”

Ou seja, o que é realmente importante e fundamental é que estudar a filosofia não é só esmerar-se no burilamento dos discursos inflamados no verbo, mas vazios de conteúdos. Importa mesmo que apare as arestas na prática e aquisição de virtudes; aperfeiçoarmos a nós mesmos, como complementa:

“[LI] Por quanto tempo ainda esperarás para que te julgues merecedor das melhores coisas e para que em nada transgridas os ditames da razão? Recebeste os princípios filosóficos, com os quais foi preciso concordar, e concordaste.  Por qual mestre ainda esperas para que confies a ele a correção de ti mesmo? Não és mais um adolescente, já és um homem feito. Se agora fores descuidado e preguiçoso, e sempre fizeres adiamentos após adiamentos, fixando um dia após o outro o dia depois do qual cuidarás de ti mesmo, não perceberás que não progrides. E permanecerás, tanto vivendo quanto morrendo, um homem comum. [LI.2] Então, a partir de agora, como um homem feito e que progride, considera a tua vida merecedora de valor. E que seja lei inviolável para ti tudo o que se afigurar como o melhor. Então, se uma tarefa árdua, ou prazerosa, ou grandiosa, ou obscura te for apresentada, lembra que essa é a hora da luta, que essa é a hora dos Jogos Olímpicos, e que não há mais nada pelo que esperar, e que, por um revés ou um deslize, perde-se o progresso, ou o conserva. [LIII.3] Deste modo Sócrates realizou-se: de todas as coisas com que se deparou, não cuidou de nenhuma outra, exceto a razão. E tu, mesmo que não sejas Sócrates, deves viver desejando ser como Sócrates.”

Portanto, quanto o que se pretende como objetivo na filosofia, e nisso está nosso foco, é sintetizado por Epicteto, no capítulo LII, do Encheirídion:

“O primeiro e mais necessário tópico da filosofia é o da aplicação dos princípios [...]”

(grifos meus)
______.

ARRIANO FLÁVIO. O Encheirídion de Epicteto. Edição Bilíngue. Tradução do texto grego e notas Aldo Dinucci; Alfredo Julien. Textos e notas de Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão. Universidade Federal de Sergipe, 2012.

DINUCCI, Aldo; TAQUÍNIO, Antonio. Introdução ao manual de Epicteto. 2012.


______.
Askesis [1]. "Do grego. Significa exercício. É o esforço para renunciar aos prazeres sensíveis tendo em vista o aperfeiçoamento moral ou espiritual, ou ainda a realização de uma obra que exija o domínio da vontade. Os estóicos submetiam-se a essa disciplina para escapar ao domínio dos sentidos e da afetividade; os ascetas cristãos aplicavam-na a fim de se desapegarem do mundo e aproximarem-se de Deus. P. Ext., chamamos de ascese o método perseverante, gerador de sacrifícios, que o pesquisador, erudito ou filósofo, se inflige (por exemplo, Descartes, quando duvida)."




[1] DUROZOI, G. e ROUSSEL, A. Dicionário de Filosofia. Trad. Marina Appenzeller. Campinas, SP: Papirus, 1993.



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