quinta-feira, 13 de agosto de 2020

REFLEXÃO MATINAL XLVII: RETORNANDO POR CAMINHOS OUTRORA PERCORRIDOS (II)

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“[...] a alegria daqueles a quem os homens chamam de feliz é fingida, enquanto sua tristeza é pesada e supurada, e mais pesada, porque eles não podem, entretanto, exibir sua tristeza, mas devem fingir o papel da felicidade no meio das aflições que devoram seus próprios corações.” (SÊNECA, LXXX : 6)

Durante todo dia, todos os dias, a meta a que tenho me dedicado a empreender é uma disciplina interior, objetivo para quem se dedique a superar seus próprios conflitos. 

Nesse sentido, portanto, recuperado, em meio aos afazeres que se seguirão, pensando na reflexão matinal, reli, mais uma vez, uma referência de Epicteto a um certo “exercício”, típico da escola dos pitagóricos, em conformidade com o que Hadot chama de “exercícios espirituais”, que também já registrei aqui, a partir da releitura de um artigo e de uma apresentação do prof. Aldo Dinucci, num "Colóquio sobre Epicteto", em que discute essa expressão, que deve entendida como “O primeiro e mais necessário tópico da filosofia: a " [...] aplicação dos princípios [...]" (Encheirídion. LII:1).

Sempre retornando por caminhos antes percorridos, e por ser tarefa ainda a realizar, prossigo com mais uma reflexão. Partindo do Encherídion, temos que:

“Das coisas existentes, algumas são encargos nossos1; outras não. São encargos nossos o juízo, o impulso, o desejo, a repulsa – em suma: tudo quanto seja ação nossa. Não são encargos nossos o corpo, as posses, a reputação, os cargos públicos – em suma: tudo quanto não seja ação nossa.”  (Encheirídion, 2012. I:1)

Nesse sentido, lendo pela manhã sobre o tema, após grande e necessário intervalo por aqui, retomei esta passagem das "Paixões da alma", de René Descartes:

“Mas, como a maioria de nossos desejos se estende a coisas que não dependem de nós nem todas de outrem, devemos exatamente distinguir nelas o que depende apenas de nós, a fim de estender nosso desejo tão-somente a isso; e quanto ao mais, embora devamos considerar sua ocorrência inteiramente fatal e imutável, a fim de que nosso desejo não se ocupe de modo algum com isso, não devemos deixar de considerar as razões que levam mais ou menos a esperá-la, a fim de que essas razões sirvam para regular nossas ações” (Paixões da alma, 1983. § 146)

Somadas, portanto, o que se posso extrair destas citações, fica mesmo, bem clara a tarefa do Prokopton; o de esforçar-se em superar essa “dicotomia” íntima. E, nas “Paixões da alma”, § 148, Descartes propõe algo também, nesse sentido:

“Ora, visto que essas emoções interiores nos tocam mais de perto e têm, por conseguinte, muito mais poder sobre nós do que as paixões que se encontram com elas, e das quais diferem, é certo que, contanto que a alma tenha sempre do que se contentar em seu íntimo, todas as perturbações que vêm de outras partes não dispõem de poder algum para prejudicá-la. Servem, antes, para lhe aumentar a alegria, pelo fato de, vendo que não pode ser por elas ofendido, conhecer com isso a sua própria perfeição. E, para que a nossa alma tenha assim do que estar contente, precisa apenas seguir estritamente a virtude. Pois quem quer que haja vivido de tal maneira que sua consciência não possa censurá-lo de alguma vez ter deixado de fazer todas as coisas que julgou serem as melhores (que é o que chamo aqui seguir a virtude), recebe daí uma satisfação tão poderosa para torná-lo feliz que os mais violentos esforços da paixão nunca têm poder suficiente para perturbar a tranqüilidade de sua alma.”

Aliás, como já encontrei e citei aqui, em outro texto, o professor Valério Rohden, apresentou considerações sobre uma certa presença de elementos “estoicos” na obra de Immanuel Kant, a partir da leitura de Cícero. Aqui, relendo René Descartes, especificamente, sobre o tema do “controle das paixões” também encontrei relações, que depois verifiquei, outros já publicaram sobre esse tema também. Ora, tarefa a se pensar, a desenvolver, mas que vou deixar para o próximo texto: uma análise dessa questão, deste tema e o que se publicou, em relação a Kant e também Descartes.

“Mantenha-se forte! Mantenha-se bem” (Sêneca)

______.

ARRIANO FLÁVIO. O Encheirídion. Edição Bilíngue. Tradução do texto grego e notas Aldo Dinucci; Alfredo Julien. Textos e notas de Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão. Universidade Federal de Sergipe, 2012).

CÍCERO, M.T. 1988. De finibus bonorum et malorum / Über die Ziele des menschlichen Handelns. Edição e tradução: Olof Gigon. München/Zürich: Ártemis.

DESCARTES, René.  Discursos do Método; Meditações; Objeções e Respostas; As Paixões da Alma; Cartas. (Introdução de Gilles-Gaston Granger; prefácio e notas de Gerard Lebrun; Trad. de J. Guinsberg), Bento Prado Jr. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os Pensadores).

INUCCI, A.; JULIEN, A. O Encheiridion de Epicteto. Coimbra: Imprensa de Coimbra, 2014.

EPICTETO. Entretiens. Livre I, II, III, IV. Trad. Joseph Souilhé. Paris: Les Belles Lettres, 1956.

______. Epictetus Discourses. Book I. Trad. Dobbin. Oxford: Clarendon, 2008.

______. O Encheirídion de Epicteto. Trad. Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão: EdiUFS, 2012. (Edição Bilíngue)

______. Testemunhos e Fragmentos. Trad. Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão: EdiUFS, 2008.

KANT, I 2003. Crítica da razão prática. Edição bilíngüe.Tradução Valerio Rohden. São Paulo: Martins Fontes.

_______.1983. Crítica da razão pura. Tradução Valerio Rohden e Udo Moosburguer. Coleção Os Pensadores. São Paulo,Abril Cultural.

______. A religião nos limites da simples razão. Edições 70, Lisboa, 1992.

_______. 1902 ss. Reflexionen zur Moralphilosophie, In: KANT, Immanuel. Kants Werke, Ed. Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaften, Berlin, Georg Reimer, <Akademie Text-Ausgabe, Berlin,Walter de Gruyter & Co.>, vol. XIX.

_______. Dissertação de 1770. Trad. Leonel R. Santos. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985.

_______. 1993. Crítica da faculdade do juízo. Trad.Valerio Rohden e António Marques.

KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos. 93. ed. 1. reimpressão. (edição histórica). Brasília: FEB, 2013 (907-912).

LEBRUN, Gérard. O conceito de paixão. In: NOVAES, Adauto (org.). Os sentidos da paixão. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.


MARCO AURÉLIO. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Livro II. 1).

SÊNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. 14. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gubekian, 2014 (Carta LXXX)

TEIXEIRA, L. Ensaio sobre a Moral de Descartes. 222p. Tese (Cátedra) – Faculdade de Filosofia Ciências e Letras. São Paulo, 1955.

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