domingo, 4 de abril de 2021

REFLEXÃO MATINAL LXXIX: FILOSOFIA E BENS INTERIORES

(IMAGEM: "Pinterest")

 

"Le domaine de la philosophie est de l'ordre de biens interieurs"  (Épictète. D. I, XV : 1)

Passada a turbulência, cabe prosseguir com os “exercícios” como sempre. E, como diz Epicteto em (Diatribes. III. XII. 3-4):

“Nem toda dificuldade e perigo é adequada para o treino, mas apenas aquela que é conducente ao sucesso em atingir o objeto de nosso esforço. E qual é o objeto de nosso esforço? Agir sem impedimento na escolha e na aversão. E o que isso significa? Nem falhar em conseguir o que desejamos, nem cair naquilo que queremos evitar.”

Decidido, há algum tempo, que seriam constantes o treino e os esforços na direção e reformulação dos hábitos (ethos), prossigamos. 

Agora, pela manhã, na releitura de Hadot (2014), sobre o que ele denominou “exercícios espirituais”, pude refletir novamente sobre sua divisão dos “exercícios” estoicos em:

  • aqueles que desenvolvem a consciência de si direcionados a uma visão exata do mundo, da natureza e, 
  • aqueles que são orientados para a paz e tranquilidade interior (Inner Citadel[1]).

Tal disciplina nos “exercícios” tem por meta equilibrar as emoções e, para Epicteto são fundamentalmente essenciais para a formação da alma.

“O homem que se exercita contra tais representações externas é o verdadeiro atleta em treino. [...] Grande é a luta, divina é a tarefa; o prêmio é um reino, liberdade [ἐλευθερίας], serenidade [εὐροίας], paz [ataraxia - ἀταραξία].”

E, é tarefa principal de quem pretenda reformular os hábitos, por exemplo, reeducar-se na busca do Bem que está ao alcance de cada um, para que, daí descubra que tudo o que lhe sucede durante a vida não é necessariamente um mal a paralisá-lo.

É certo que haverá o que lhe foge ao controle, como diz Epicteto, no Encherídion, I, 1. Mas isso é o que a vida exige de cada um:  o esforço, prática e “exercício” no que está sob seu controle: o interior. O que é exterior está para além do nosso controle.

Ademais e, principalmente, com estas recomendações, nota-se na obra de Epicteto[2] a disciplina e a adoção desses “exercícios” na busca de euroia, que a mudança dos hábitos a ponto de reformular a teoria em prática é processo lento e exige persistência. Por isso:

“Primeiro digira seus princípios, e então você terá certeza de não vomitá-los. [...] Mas depois que você tenha digerido estes princípios, mostre-nos alguma mudança em seu princípio governante [razão] que é devido a eles.” (D. III.XXII.3)

A proposta, portanto, é de alcançarmos o controle sobre nossos julgamentos, nossas escolhas (προαίρεσις) e assentimentos. Esforço válido e imprescindível!

“É mais necessário cuidar da alma do que do corpo, pois é preferível estar morto a viver mal. (Estobeu, Florilegium, IV. 53, 27. De Epicteto )”

E, para concluir com Aldo Dinucci e Alfredo Julien (2008):

“Ninguém é livre não sendo senhor de si mesmo. (Florilegium. frag. 38). ”

 

______.

ARRIANO FLÁVIO. O Encheirídion de Epicteto. Edição Bilíngue. Tradução do texto grego e notas Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão. Universidade Federal de Sergipe, 2012.

DESCARTES, René.  As paixões da alma. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

DINUCCI, Aldo; TARQUÍNIO, Antonio. Introdução ao Manual de Epicteto. 3. ed, São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe, 2012.

______; JULIEN, Alfredo. O Encheiridion de Epicteto. Coimbra: Imprensa de Coimbra, 2014.

______; JULIEN, A. (Org.) Epicteto: fragmentos e testemunhos. Tradução dos fragmentos gregos e notas Aldo Dinucci e Alfredo Julien. Textos de Aldo Dinucci, Alfredo Julien e Fábio Duarte Joly. São Cristóvão. Universidade Federal de Sergipe, 2008.

EPICTETO. Entretiens. Livre I, II, III, IV. Trad. Joseph Souilhé. Paris: Les Belles Lettres, 1956.

______. Epictetus Discourses. Book I. Trad. Dobbin. Oxford:
Clarendon, 2008.

______. O Encheirídion de Epicteto. Trad. Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão: EdiUFS, 2012. (Edição Bilíngue)

______. Testemunhos e Fragmentos. Trad. Aldo Dinucci; Alfredo Julien. São Cristóvão: EdiUFS, 2008.

EPICTETUS. The Discourses of Epictetus as reported by Arrian; fragments; Encheiridion. Trad. Oldfather. Harvard: Loeb, 1928.  https://www.loebclassics.com/

HADOT, Pierre. The inner citadel: the meditations of Marcus Aurelius. London: Harvard University Press, 2001.

______. A filosofia como maneira de viver: entrevistas de Jeannie Carlier e Arnold I. Davidson. (Trad. Lara Christina de Malimpensa). São Paulo: É Realizações, 2016

______. Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga. Trad. Flavio Fontenelle Loque e Loraine Oliveira. Prefácio de Davidson, Arnold. São Paulo: É Realizações, 2014.

IRVINE, William B. A Guide to the Good Life: the ancient art of Stoic joy. New York: Oxford University Press, 2009.

LONG, A.A. A stoic and Socratic guide to life. New York: Oxford University Press, 2007.

SÉNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2014.



[1] Hadot, Pierre. Inner citadel: the meditations of Marcus Aurelius. Trad. Michael Case, Massachusetts: Harvard University Press, 1998. 

[2] Destaque-se que Epicteto não escreveu uma obra, o que temos dele foi composto por Arriano Flávio em O Encheirídion. Nas sugestões de leitura abaixo inseri a indicação bibliográfica da edição bilíngue, com tradução do texto grego e notas Aldo Dinucci e Alfredo Julien.

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